Lipovetsky, A personalização na pós-modernidade e suas consequências

Gilles Lipovetsky, filósofo francês que nos ajuda a pensar os nossos dias, marcou os anos 80 com o lançamento do livro A Era do Vazio (1983) onde dissertava sobre a indiferença pelo sentido, sentido esse que tanto tinha preocupado as gerações que viveram as duas Grandes Guerras. O livro que, após 30 anos, continua a ser uma referência para pensar a actualidade, com as noções de hiperindividualismo, narcisismo colectivo, ausência de ídolos e tabus, o recurso ao humor para ultrapassar a indiferença, permite-nos uma autoanálise pelo modo como nos ajuda a observar a sociedade em que estamos inseridos.
Por ser tão rico nas temáticas abordadas, optei por escolher excertos que reflectem o processo de personalização, pelo impacto que acarreta no ser social. 
 
 
«[...] Longe de estar numa relação de descontinuidade com o modernismo, a era pós-moderna define-se pelo prolongamento e a generalização de uma das suas tendências constitutivas, o processo de personalização, e correlativamente pela redução progressiva da sua outra tendência, o processo disciplinar. [...] Só no quadro desta ampla continuidade democrática e individualista é que se delineia a originalidade do momento pós-moderno, a saber a predominância do individual sobre o universal, do psicológico sobre o ideológico, da comunicação sobre a politização, da diversidade sobre a homogeneidade, do permissivo sobre o coercivo. [...]
 
Mais ainda, a própria religião é arrastada pelo processo de personalização: é-se crente mas à lista, conserva-se este dogma e elimina-se aquele, misturam-se os Evangelhos com o Corão, o zen ou o budismo, a espiritualidade entrou na época caleidoscópica do super-mercado e do self-service. [...] A renovação espiritual não resulta de uma ausência trágica de sentido, não é uma resistência à dominação tecnocrática, mas causada pelo individualismo pós-moderno, reproduz a sua lógica flutuante.[...]
 
O processo de personalização dilui todas as grandes figuras da autoridade, mina o princípio de exemplo, demasiado tributário de uma era distante e autoritária que sufocava as espontaneidades singulares, dissolve por fim as convicções em matéria de educação: a dessubstancialização narcísica manifestava-se no centro da família nuclear como impotência, desapropriação e demissão educativa. [...] O processo de personalização que trabalha no sentido de aumentar a responsabilidade dos indivíduos favorece, de facto, comportamentos aberrantes, instáveis, indiferentes de algum modo ao princípio de realidade, e por isso mesmo em consonância com o narcisismo dominante e correlativo: o real transformado em espectáculo irreal, em expositor de vidro sem espessura, pela lógica das solicitações. Consequência da desafecção das grandes finalidades sociais e da preeminência conferida ao presente, o neo-narcisismo é uma personalidade flutuante, sem estrutura nem vontade, sendo a labilidade e a emotividade as suas características maiores. [...]
 
Quando o indivíduo deixa de ser meio de um fim exterior e passa a ser considerado e a considerar-se como fim último, as instituições sociais perdem o seu halo de sagrado. [...] A grande fase do individualismo revolucionário termina ante os nossos olhos: depois de ter sido um agente de guerra social, o individualismo contribui actualmente para abolir a ideologia da luta de classes. [...] Maio 68 é já uma revolução personalizada, a revolta faz-se contra a autoridade repressiva do Estado, contra as separações e imposições burocráticas incompatíveis com a livre afirmação e desenvolvimento do indivíduo. A ordem da revolução humaniza-se, levando em conta as aspirações subjectivas, a existência e a vida: à revolução sangrenta substituiu-se a revolução «estilhaçada», multidimensional, transição quente entre a era das revoluções sociais e políticas em que o interesse colectivo prima sobre o dos particulares e a era narcísica, apática, desideologizada. [...]»
 
 
Fonte: Lipovetsky, Gilles. (1989) A Era do Vazio. Lisboa: Relógio d'Água.
 
 
 

Ionesco, A irracionalidade e o Teatro do Absurdo

Eugène Ionesco (1912-1994) [1909 é apontado como ano de nascimento nalgumas fontes] é um autor romeno, tendo adquirido a nacionalidade francesa, conotado com o Teatro do Absurdo, a que prefere chamar Teatro Novo ou de Vanguarda.
Em A Busca Intermitente, livro autobiográfico, diarístico, que redige entre 1986 e 1987, o autor reflecte sobre a sua vida pessoal, a sua obra e sobre o tempo percorrido com a sinceridade que, penso, só a velhice permite.
Eis alguns excertos que revelam a sua angústia perante o que considerava ser a falta de reconhecimento pelo seu papel na criação de um Teatro dito «do absurdo» [termo cunhado por Esslin para agrupar vários autores que após a II Grande Guerra experimentavam uma dramaturgia que explorava a falta de sentido da condição humana].
 
 
«[...] Não posso impedir que as minhas obsessões, a minha vaidade, me atormentem. É realmente muito irritante ouvir dizer ou ler num jornal que Beckett é o promotor do teatro dito «do absurdo». Mas fui eu que, na encenação de Nicolas Bataile, fiz representar, em 1950, A Cantora Careca, nos Noctambules e, em 1951, A Lição, no Théâtre de Poche. Em Abril de 1952, Les Chaises, no Théâtre du Nouveau-Lancry, com encenação de Sylvain Dhomme. Em 1953, Victimes du devoir, com Jacques Mauclair; em 1954, Amédée ou Comment s'en débarrasser, com encenação de Jean-Marie Serreau. [...]
Quanto a Beckett, fez a sua aparição no teatro em fins de 1953, com À espera de Godot. O teatro dito «do absurdo» (Esslin) ou da «dérision» (definição de E. Jacquart) e que eu prefiro chamar «o teatro novo» ou «de vanguarda», uma vanguarda que se mantém viva, já que, dos anos 50 para cá, esse teatro, tão característico, não houve ainda nada que ocupasse o lugar dele: o teatro novo prosperava já nas tábuas graças a mim, a Adamov e também a gente como Jean Tardieu (insuficientemente honrado) e a gente mais nova, Weingarten, Dubillard e Raymond Queneau. [...] Diz-se que Beckett tinha escrito já o Godot em 1947. Mas era extremamente discreto. De resto, os primeiros esboços da Cantora Careca, que então se chamava O inglês sem mestre, tinha-os escrito em 1943, na Roménia, e facilmente o posso comprovar.
Beckett, aliás, não é o que se possa chamar um «membro» da família «do absurdo».: o humor dele provém, pertence a uma outra tradição, a um folclore, o irlandês. [...]
Beckett é demasiado lúcido, demasiado frio, demasiado calculado, sabe muito (demasiado) conscientemente o que deve e não deve dizer. Não deu qualquer espaço na sua obra, nele próprio, nem à surpresa, nem à contemplação, nem à lucidez segunda da irracionalidade, à (sua) profundidade mais negra do que o seu humor negro. Faz «estilo» com a miséria do mundo, e a sua, e a nossa.
É por isso que ele é limitado. Talvez mesmo medíocre - apesar (ou por causa) da sua ciência.
Embrenha-se na noite com muita claridade, demasiada. É por isso que agrada. Nem um erro, nem um descuido, nada há ali ao acaso. É por isso que vai deixar de agradar. [...]
 
Na supra-racionalidade da ciência, à supra-racionalidade da ciência opõe-se aquilo a que se chama a irracionalidade do mundo, dos homens, no nosso comportamento. A irracionalidade é muito mais poderosa do que a racionalidade: o nosso comportamento, os nossos erros, assim no-lo provam. [...]
É evidente que caminhamos para a catástrofe, é evidente. À Catástrofe, à derrocada para a catástrofe continua a chamar-se Progresso ( o «progresso» na tal linguagem estereotipada). [...]
A irracionalidade é mais poderosa do que a racionalidade. No irracional repousa a verdade. É lá que devemos ir procurá-la. Mas só podemos, paradoxo, procura-la com a nossa razão tola, a razão que não vê, e se é no irracional que está a verdade, e já que ela é eros e thanatos, o bem (o positivo) e o mal (negativo), deixemo-nos impelir pelo bem que não compreendemos, mas deixemo-nos levar por Ele, rezemos-Lhe para isso, rezemos. [...]»
 
 
Fonte: Ionesco, Eugene. (1990) A busca intermitente. Lisboa: Difel.
 
 
 
 
 
 
 
 

Barthes, O leitor e o crítico

Em Crítica e Verdade (1966), Roland Barthes (1915-1980) explicita em que consiste a Nova Crítica em resposta aos ataques que lhe são dirigidos. Uma vez que não é matéria que se enquadre nos propósitos deste blog, retiro deste livro apenas um excerto que nos lembra a importância do leitor e de como não pode ser substituído pelo crítico, ainda que a abordagem deste possa ser útil para acedermos a textos mais herméticos. É que «Só a leitura ama a obra, mantém com ela uma relação de desejo.»
 «[...] Resta ainda uma última ilusão a que temos de renunciar: o crítico não pode, de todo, substituir-se ao leitor. É inútil ele pretender - ou pedirem-lhe - que empreste uma voz, por muito respeitosa, à leitura dos outros, que se reduza a ser, ele próprio, um leitor no qual outros leitores delegaram a expressão dos seus próprios sentimentos, devido ao seu saber ou às suas opiniões, numa palavra, que represente os direitos de uma colectividade sobre a obra. E porquê? Porque mesmo definindo o crítico como um leitor que escreve, a própria definição implica que esse leitor depara, no seu caminho, com um medianeiro temível: a escrita.
Ora escrever equivale de certo modo a fracturar o mundo (o livro) e a refazê-lo. [...]
Assim, "tocar" um texto, não com os olhos, mas com a escrita, abre, entre a crítica e a leitura, um abismo, o mesmo que qualquer significação abre entre o seu bordo significante e o seu bordo significado. Porque, tanto do sentido que a leitura dá à obra como do significado, nada se sabe, talvez porque esse sentido, sendo o desejo, se estabelece para além do código da língua. Só a leitura ama a obra, mantém com ela uma relação de desejo. Ler é desejar a obra, é pretender ser a obra, é recusar dobrar a obra fora de qualquer outra fala que não a própria fala da obra: o único comentário que um puro leitor, que puro se mantivesse, poderia produzir, seria o decalque [...]. Passar da leitura à crítica é mudar de desejo, é deixar de desejar a obra para desejar a própria linguagem. Mas, pelo mesmo acto é também remeter a obra para o desejo da escrita, que a gerou. [...]»


Fonte: Barthes, Roland. (1997) Crítica e Verdade. Lisboa: edições 70.

Dürrenmatt, Tragédia vs. Comédia

Friedrich Dürrenmat (1921-1990), autor de peças de teatro, romances policiais e poesia, que descobri através da célebre peça "A visita da velha senhora" de 1956, reflecte neste ensaio de 1955, intitulado Problemas do teatro, sobre as unidades de lugar, tempo e acção, os espaços cénicos, os recursos do dramático e do épico, etc., oportunidade para ouvirmos um dramaturgo falar sobre a sua própria arte. 
Interessou-me aqui incluir as suas reflexões sobre a comédia e a tragédia no decurso do pós-Segunda Grande Guerra.

«[...] Na tragédia antiga e no teatro shakespeareano, o herói pertence a mais alta classe da sociedade, isto é, à nobreza. [...] Entretanto, quando Lessing e Schiller introduzem a tragédia burguesa, o público passa a ver a si mesmo na pele dos heróis que sofrem no palco. E foi-se ainda mais adiante. A personagem de Woyzeck, de Georg Büchner, é um proletário primitivo que, do ponto de vista social, representa menos que o frequentador mediano de teatro. Com isso, justamente nesta forma extrema de existência, nesta forma derradeira e misérrima, o público passa a ver o ser humano, isto é, a si mesmo.
Neste ponto, deve-se mencionar, finalmente, Luigi Pirandello, o primeiro dramaturgo a apresentar o herói no palco, tanto quanto eu saiba, de maneira desmaterializada, transparente, analogamente ao que Thornton Wilder fez com o espaço dramático, de forma que o público, sentado diante de tal esquema, assiste à sua própria fragmentação, à análise psicanalítica de si mesmo e, desse modo, o palco se torna um espaço ou um mundo interior.
Ora, mesmo antigamente, o teatro não colocava em cena apenas reis e proprietários de terra. Desde sempre, a comédia reconheceu o mendigo, o agricultor e o cidadão comum como heróis, mas apenas a comédia. Nas peças de Shakespeare, jamais entra em cena um rei engraçado; a sua época permitia mostrar um senhor talvez como um monstro sanguinário, mas nunca como um tolo. Em suas peças, cômicos são sempre os palacianos, os artesãos, os trabalhadores.
Assim, pode-se observar, no desenvolvimento do herói trágico, uma guinada na direção da comédia. O mesmo se dá com o tolo, que cada vez mais se transforma numa figura trágica. Este estado de coisas, porém, não é destituído de significado. O herói de uma peça de teatro não apenas impulsiona a ação, ou é vítima de um determinado destino, mas também representa um mundo. Por isso, devemo-  -nos perguntar acerca do modo como o nosso mundo, pleno de dúvidas, deve ser representado no palco, com que heróis; devemo-nos perguntar acerca do modo como os espelhos captam esse mundo e como eles devem ser polidos. [...]
O mundo de hoje pode ser mais bem representado por um pequeno traficante, por um escriturário ou por um policial, do que por um Conselho Federal ou um chanceler. A arte ainda tem penetração nas vítimas, tem penetração nas pessoas em geral, mas os poderosos não são mais por ela alcançados. [...]
Porém, a tarefa da arte, se é que ela pode ter uma, e, por conseguinte, a tarefa do teatro hodierno, é a de criar forma ou algo concreto. E isto é conseguido, sobretudo, pela comédia. A tragédia, por ser o gênero artístico mais rígido, pressupõe um mundo enformado. A comédia, se não for comédia social, nos moldes de Molière, pressupõe um mundo desenformado, em mudança, em revolução, um mundo em arrumação, como o nosso. A tragédia vence a distância. Ela faz os mitos dos tempos remotos trazerem os atenienses ao presente. A comédia cria distância [...]. Seus temas [de Aristófanes] não se circunscrevem a mitos, mas a ações inventadas, que não transcorrem no passado, mas no presente. Elas são lançadas ao mundo feito projéteis que, ao se transformarem em megafone, transformam o presente em algo cômico e, dessa forma, também visível. Agora isto não quer dizer que um drama, hoje, possa ser apenas cômico. [...] 
A tragédia pressupõe culpa, necessidade, moderação, controle, responsabilidade. Na confusão reinante em nosso século, nesta desordem da raça branca, não existem mais culpados e também não existem mais responsáveis, [...] Tornamo-nos coletivamente culpados, coletivamente encarcerados nos pecados de nossos pais e de nossos antepassados. [...] A nós convém apenas a comédia. Nosso mundo caminhou simultaneamente para o grotesco e para a bomba atômica, do mesmo modo que os quadros apocalípticos de Jerônimo Bosch também são grotescos. [...]
Porém, o trágico ainda continua sendo possível, embora não mais a tragédia pura. Podemos obter, gerar, o trágico a partir da comédia, como um momento assustador, ou como um abismo que se abre. É assim que muitas tragédias de Shakespeare são comédias, das quais o trágico emerge. 
Quase se poderia concluir que a comédia é a expressão do desespero, mas tal conclusão não é definitiva. [...]
A liberdade do homem manifesta-se no riso, enquanto no choro se manifesta a sua necessidade. Hoje é necessário demonstrar a liberdade. Os tiranos deste planeta não se comovem diante das produções dos poetas, bocejam diante de seus poemas queixosos, consideram seus cantos heróicos contos de fada tolos e adormecem diante de poemas religiosos. Apenas uma coisa os assusta: o escárnio. [...]
O cômico é considerado coisa menor, dúbia, indecente, e só é validado no momento em que, com ele, alguém se sente tão canibalisticamente bem quanto uma vara de porcos. Mas, a partir do momento em que o cômico passa a ser reconhecido como perigoso, revelador, desafiador, moralizador, ele é deixado de lado, como se fosse um ferro em brasa, visto que a arte pode ser tudo o que quiser, desde que permaneça agradável. [...]»


Fonte: Dürrenmatt, Friedrich. (2007) O sósia/Problemas do teatro. São Paulo: EDUSP.

Steiner, A psicanálise de Freud

"Nostalgia do absoluto", livro composto por várias conferências proferidas por George Steiner, aborda a substituição dos sistemas religiosos por outros que ambicionam constituir uma explicação abrangente, que preencha o vazio deixado pela nostalgia do absoluto, na sociedade ocidental. Steiner debruça-se sobre o marxismo, a psicanálise e a antropologia de Lévi-Strauss.
Aqui deixo um excerto que reporta à Psicanálise, numa aproximação à descrença do filósofo inglês Karl Popper na cientificidade da teoria freudiana, que afinal recorre ao mito e à literatura para 'provar' as suas teses.


«[...] Desejo sugerir, com hesitação, mas, espero, alguma seriedade, que a famosa divisão da consciência psicológica humana - id, ego, superego - deve muito à divisão em cave, quartos e sótão da casa da classe média vienense na viragem do século XIX para o XX. As teorias de Freud não são científicas no sentido de serem universais, independentes do seu meio social e étnico, como o são as teorias da física ou da biologia molecular. São inspiradas leituras e projecções das condições económicas, familiares e sexuais da existência burguesa na Europa Central e Ocidental entre, digamos, os anos 80 do século XIX e os anos 20 do século XX. [...]

Com isto não procuro diminuir o poder seminal das observações de Freud. É perfeitamente consensual que essas observações tiveram repercussões formidáveis na cultura do Ocidente. [... Mas] Quando seria de esperar um conjunto de provas de natureza clínica e estatística, a enumeração de um grande número de casos, Freud dá-nos uma "prova" - ponho a palavra entre aspas - que vai buscar ao mito e a literatura. [...] Aquilo que, para Freud, demonstrava a realidade da universalidade das suas metáforas terapêuticas, como o complexo de Édipo, era igualmente um conjunto de elaborações metafóricas e dramas arquetípicos, corporizados e transmitidos sob a forma de mitos. [...]

Na psicanálise, tal como no marxismo, existe o mistério do pecado original. Mas, ao contrário do relato de Marx, o de Freud é específico. Conta-nos do parricídio cometido na horda primitiva, da castração e/ou assassínio da figura paterna pelos seus filhos. A humanidade, diz-nos Freud, está marcada por este crime primitivo. Daí descende a longa história do ajustamento entre pulsão instintiva e repressão social, sexualidade indiscriminada e ordem familiar, ajustamento esse que está bem longe de ser perfeito. [...] Ao reflectir sobre a infelicidade, aparentemente inerente, da espécie humana, enredada numa dialéctica de impulsos e constrangimentos de natureza biológica e social, Freud embrenha-se cada vez mais no mitológico. [...]
Segundo Freud, duas divindades, dois deuses, dois poderes irresistíveis governam e dividem o nosso ser. O amor e a morte, Eros e Tanatos. O seu conflito determina os ritmos da existência, da procriação, da evolução somática e psíquica. Mas no fim - contrariamente a todas as previsões intuitivas e instintivas, a todas as nossas esperanças - não é Eros, o amor, mas sim Tanatos quem prevalece, quem se mostra mais próximo das raízes do humano. O que a nossa espécie procura, em última instância, não é a sua sobrevivência e perpetuação, mas sim o repouso, a perfeita inércia. No programa visionário de Freud, a explosão da vida orgânica, que conduziu à evolução humana, foi uma espécie de anomalia trágica, quase uma exuberância fatal. Acarretou sofrimentos incalculáveis e catástrofes ecológicas. Mas este desvio de vida e consciência acabará mais cedo ou mais tarde. Um processo de entropia interna está em movimento. Uma grande quietude voltará à criação à medida que a vida regresse à condição natural do inorgânico. A consumação da libido encontra-se na morte.
 
[...] A psicanálise freudiana estava determinada a retirar da psique humana as ilusões infantis - é esse o termo usado por Freud - da religião. Freud queria libertar o homem da infantilidade das crenças metafísicas. Evidentemente, a psicologia de Jung não só recorre à experiência religiosa para muitas das suas categorias principais, como vê na religião uma componente necessária e evolutiva da história e saúde da alma humana. Consequentemente, a disputa freudiana com o modelo junguiano é em parte, creio, uma disputa entre o agnosticismo e a crença no transcendente e, a um nível muito mais profundo, um duelo entre uma nova mitologia, uma crença substituta, e um sistema que quer trazer de volta os seus antigos rivais, os deuses. [...] Freud procurava banir as sombras arcaicas do irracionalismo, da fé no sobrenatural. A sua promessa, como a de Marx, era uma promessa de luz. Não se cumpriu. Antes pelo contrário.»


Fonte: Steiner, George. (2003) Nostalgia do absoluto. Lisboa: Relógio d'Água Editores.

Sarrazac, O futuro do drama

Jean-Pierre Sarrazac é um dos nomes incontornáveis para pensar o Teatro hoje. O seu livro "O futuro do drama", com origem na sua tese de doutoramento de finais dos anos 70 e reeditado 20 anos depois, continua a constituir uma ferramenta importante na reflexão sobre o teatro contemporâneo: a postura face aos géneros literários, as relações entre a fábula e a montagem, a personagem inacabada, etc., procurando dotar o criador/espectador de elementos que lhe permitam melhor compreender as profundas transformações que a arte dramática conheceu na 2ª metade do século XX. A designação de teatro rapsódico não propõe a ausência de forma, mas a forma mais livre que o teatro conheceu, dando conta da existência humana na sua complexidade e fugacidade. 


«[...] princípios característicos da rapsodização do teatro: recusa do "belo animal" aristotélico e escolha da irregularidade, caleidoscópio dos modos dramático, épico e lírico, reviravolta constante do alto e do baixo, do trágico e do cómico; junção de formas teatrais e extrateatrais, formando o mosaico de uma escrita resultante de uma montagem dinâmica; passagem de uma voz narradora e interrogante, que não poderíamos reduzir ao "sujeito épico" szondiano, desdobramento (nomeadamente em Strindberg) de uma subjectividade alternadamente dramática e épica (ou visionária)... Limitar-me-ei, portanto, a um problema que se situa no centro da evolução da escrita dramática no século XX: a liquidação do último constrangimento "aristotélico": a "unidade de acção", tão incómoda e obsoleta no nosso tempo, como incómodas e obsoletas podem ter parecido, no século das Luzes, as unidades de tempo e de lugar. [...]

O modelo dramático, fundado sobre um conflito interpessoal mais ou menos unificado, deixou de dar globalmente conta da existência moderna. E isso, desde os finais do século XIX e cada vez mais claramente com o passar das décadas. [...] O devir rapsódico do teatro aparece, assim, como a resposta acertada a esta explosão do próprio mundo. A montagem das formas, dos tons, todo este trabalho fragmentário de desconstrução/reconstrução (descoser/recoser) em torno das formas teatrais, parateatrais (nomeadamente, o diálogo filosófico) e extrateatrais (romance, novela, ensaio, escrita epistolar, diário, relato de experiências de vida...) praticado por escritores tão diferentes quanto Brecht, Müller, Duras, Pasolini, Koltès, apresenta características de uma intensa rapsodização das escritas teatrais. [...]

Inclino-me a apresentar esta presença vocal e gestual do rapsodo como um traço de rejeição, contra um certo neo-aristotelismo que actualmente domina e se empenha em restaurar as regras e outras unidades. Proclamando, se necessário for, como nos velhos tempos de D'Aubignac, que o autor dramático deve permanecer ausente da sua obra. Porém, eu faço o mesmo apelo para distinguir a obra verdadeiramente rapsódica do simples zapping pós-moderno das formas: montagem - ou colagem - indiferente (ou seja, nenhuma voz emerge face ao público) de formas que se tornaram kitch e atemporais. O que falta, tanto no pós-moderno como no neoclássico, é esta voz de escuta e de inquietação que é a do sujeito rapsódico, é a pulsão - a "pulsação" - rapsódica. [...]»


Fonte: Sarrazac, Jean-Pierre. (2002) O futuro do drama. Porto: Campo das Letras.

Barthes, Em que consiste o Ditirambo?

Vem em todos os manuais sobre o Teatro Grego. A Tragédia nasceu em finais do século VI a.C. de um canto lírico-coral chamado Ditirambo (manifestação em honra do deus Dioniso), quando Téspis se destaca do coro dando lugar a uma forma dramática. Interessa pois perceber em que consiste o Ditirambo. 


«[...] Na época clássica, o espectáculo grego compreende quatro géneros principais: o ditirambo, o drama satírico, a tragédia, a comédia. Podemos acrescentar-lhe: o cortejo que antecedia a festa,o comos, provável sobrevivente das procissões (ou mais exactamente dos monómios dionisíacos); e embora se trate mais de concertos do que de representações, as audições timélicas, espécie de oratórios cujos executantes tomavam lugar na orquestra, à volta da tímele [altar sagrado], ou lugar consagrado a Dioniso.
O ditirambo é proveniente de certos episódios do culto de Dioniso, no século VII a.C., provavelmente perto de Coríntia, cidade comercial e cosmopolita. Rapidamente adquiriu duas formas: uma forma literária, e uma forma popular na qual o texto era (largamente) improvisado. Levado para Atenas por Téspis, o ditirambo normalizou-se. O desenvolvimento do género dramático (tragédia e comédia) não lhe fez nenhuma concorrência: as representações ditirâmbicas ocupavam os dois primeiros dias das Grandes Dionísias, antes dos dias consagrados aos concursos de tragédia e de comédia. Era uma espécie de drama lírico, cujos temas, mitológicos ou por vezes históricos, faziam lembrar muito os da tragédia. A diferença (capital) era que o ditirambo se representava sem actores (mesmo se havia solos) e sobretudo sem máscaras e sem trajos. O coro era numeroso: cinquenta executantes, crianças (de menos de dezoito anos) ou homens. Era um coro cíclico, quer dizer que as danças do coro se faziam na orquestra à volta da tímele, e não de frente, perante o público, como na tragédia. A música utilizava sobretudo modos orientais, era de significação tumultuosa (por oposição ao peã  [hino sacro] apolíneo); esta música tornou-se cada vez mais importante do que o texto, o que aproxima também o ditirambo da nossa ópera. Não nos resta nenhum destes ditirambos, salvo alguns fragmentos mutilados de Píndaro. [...]»



Fonte: Barthes, Roland. (2009) O óbvio e o obtuso. Lisboa: Edições 70. 

Roselee Goldberg, A arte da performance

Em 1978, Roselee Goldberg procurou fazer a história da performance denotando a sua importância para a actividade artística no século XX. Necessidade e provocação foram os motores que despoletaram a atitude de artistas que não se reviam nos meios de expressão dominantes ou a eles não tinham acesso. 
Pela dificuldade em classificar em que consiste a performance ou o que define o performer, pareceu-me útil esta introdução presente em "A Arte da Performance, do Futurismo ao presente" de Roselee Goldberg. 


«A performance passou a ser reconhecida como meio de expressão artística independente na década de 1970. Nessa época, a arte conceptual - que privilegiava uma arte das ideias em detrimento do produto, uma arte que não se destinasse a ser comprada ou vendida - estava no seu apogeu, e a performance, frequentemente uma demonstração ou execução dessas ideias, tornou-se assim a forma de arte mais visível deste período. [...]

Os manifestos da performance, desde os futuristas até aos nossos dias, representam a expressão de dissidentes que têm procurado outros meios de avaliar a experiência artística no quotidiano. A performance permite comunicar directamente com um grande público e escandalizar os espectadores, obrigando-os a reavaliar os seus conceitos de arte e a sua relação com a cultura. [...] A obra pode ter a forma de espectáculo a solo ou em grupo, com iluminação, música ou elementos visuais criados pelo próprio performer ou em colaboração com outros artistas, e ser apresentada em lugares como uma galeria de arte, um museu, um "espaço alternativo", um teatro, um bar, um café ou uma esquina. Ao contrário do que se verifica na tradição teatral, o performer é o artista, quase nunca uma personagem, como acontece com os actores, e o conteúdo raramente segue um enredo ou uma narrativa nos moldes tradicionais. A performance pode também consistir numa série de gestos íntimos ou numa manifestação teatral com elementos visuais em grande escala e durar apenas alguns minutos ou várias horas; pode ser apresentada uma única vez ou repetida diversas vezes e seguir ou não um guião; tanto pode ser fruto de improvisação espontânea como de longos meses de ensaios. [...]

A história da performance no século XX é a história de um meio de expressão maleável e indeterminado, com infinitas variáveis, praticado por artistas insatisfeitos com as limitações das formas mais estabelecidas e decididos a pôr a sua arte em contacto directo com o público. Por esse motivo sempre teve uma base anárquica. Devido à sua natureza, a performance dificulta uma definição fácil ou exacta que transcenda a simples afirmação de que se trata de uma arte feita ao vivo pelos artistas. Qualquer definição mais rígida negaria de imediato a própria possibilidade da performance, pois os seus praticantes usam livremente quaisquer disciplinas e meios como material - literatura, poesia, teatro, música, dança, arquitectura e pintura, assim como vídeo, película, slides e narrações -, utilizando-os nas mais diversas combinações. De facto, nenhuma outra forma de expressão artística tem um programa tão ilimitado, uma vez que cada performer cria a sua própria definição através dos processos e modos de execução adoptados. [...]»


Fonte: Goldberg, Roselee. (2012) A Arte da Performance, do Futurismo ao presente. Lisboa: Orfeu Negro.

Piscator, O Teatro Épico

Erwin Piscator (1893-1966), actor e encenador alemão, surge como um dos nomes incontornáveis na concretização de um Teatro Político que promove a reflexão em torno de temas da actualidade (Zeittheater). Recorreu, para tal, à montagem de quadros, aprendida no Cabaret alemão, mas também à projecção de imagens e filmes, às canções e legendas (à semelhança de Brecht). Era seu propósito, como afirma Eugénia Vasques, «lutar por um teatro que tivesse uma imediata e directa influência na transformação da vida, e que fomentasse a informação e a tomada de consciência dos “porquês” e dos “comos” da realidade de todos os dias.»


«O século XX ficará na história do teatro como o quadro temporal por excelência das grandes revoluções técnicas e estéticas no palco teatral do Ocidente. Com efeito, é neste século que o palco se transforma “no meio, por excelência, para a discussão intelectual, para a análise psicológica, para o conflito social e para a experimentação nas artes teatrais e dramáticas – muito mais, diga-se, do que em outros períodos [históricos] durante os quais o teatro “legitimado” não encontrou qualquer competição noutros domínios do divertimento.” (Gassner, p. 6; tradução minha).

O actor alemão (e sobretudo encenador) Erwin Piscator (1893-1966), um dos grande renovadores da estética teatral na Alemanha, começou a desenvolver uma actividade sistemática no teatro imediatamente depois da Guerra Mundial I. [...] Os seus espectáculos tornaram-se “Manifestos” com o objectivo de “fazer política” e não “divertimento” para a “classe burguesa” que ele tinha, aliás, de ajudar a combater! [...]

Piscator queixava-se do desfasamento entre o teatro político que se desenvolvia no palco prático do tempo e a dramaturgia sua contemporânea. A revolução Expressionista no teatro tinha sido quase exclusivamente de ordem estética e Piscator encontrava-se a travar uma batalha sociológica ao pretender criar um teatro que reflectisse as preocupações e lutas do proletariado. [...] Em 1927, sob a directa responsabilidade do seu colaborador Felix Gasbarra, Piscator fundou o seu primeiro “colectivo dramatúrgico” do qual Brecht seria, aliás, um dos membros activos.

As inovações propostas por Piscator tinham objectivos mais didácticos e dramatúrgicos do que objectivos meramente tecnológicos e foram sistematicamente desenvolvidas ao longo das suas dezanove primeiras encenações. As mais relevantes destas inovações foram a introdução de um narrador-comentador, a utilização sistemática de projecções simples e múltiplas, de filmes e documentários e do filme de banda desenhada, a instalação de cenas simultâneas e de cenas que decorrem ao longo do tempo, a experimentação pioneira de um teatro de luz e a introdução muito experimental dos tapetes rolantes, elevadores e dispositivos cenográficos (como Meyerhold) que eram a própria cenografia. [...]

Depois de regressar à Alemanha Piscator, haveria de afirmar inesperadamente:

Não fui eu que inventei o meu estilo de teatro, mas quem o criou foi a terrível experiência da guerra, o desespero da inflação e as lutas sociais do pós-guerra. Seja teatro político ou teatro épico, nas minhas mãos e quase contra a minha vontade, todas as peças e produções se tornaram confissões. Se fosse necessário encontrar um nome para isto, o mais apropriado seria o de “teatro confessional”. (cit. em Patterson p. 148; tradução minha) [...]»


Fonte: Vasques, Eugénia (2007) Piscator e o conceito de "Teatro Épico". Amadora: ESTC.

Brecht, A nova técnica da arte de representar

Bertolt Brecht (1898-1956) procurou defender uma ideia de teatro que desse lugar à análise e à crítica em prol de uma mudança social. Para tal, era necessário fazer um outro teatro, um teatro que não procurasse a ilusão e a empatia do público com o destino das suas personagens. Um teatro "não-aristotélico" que, ao invés de conduzir à catarse apaziguadora, despoletasse a reflexão que conduz à acção transformadora. 
Num teatro assim, o actor não poderia construir personagens com base na identificação. Era necessário romper com o "teatro ilusionista" que o recurso à quarta parede permitia, dirigir-se ao público mostrando personagens cujas opções podem ser discutidas em busca de alternativas. Era necessário um actor interventivo que, através do processo de distanciação (ou estranhamento), tornasse o hábito matéria de pesquisa e modificação.


«Tentarei a seguir descrever uma técnica de representação utilizada em alguns teatros para distanciar do espectador os acontecimentos apresentados. O objectivo desta técnica do efeito de distanciação era conferir ao espectador uma atitude analítica e crítica perante o desenrolar dos acontecimentos. Os meios para tal empregados eram de natureza artística.

Para a utilização deste efeito segundo o objectivo já mencionado, é condição necessária que no palco e na sala de espectáculos não se produza qualquer atmosfera mágica e que não surja também nenhum "campo de hipnose". [...] Não se aspirava, em suma, a pôr o público em transe e a dar-lhe a ilusão de estar a assistir a um acontecimento natural, não ensaiado. [...] É condição necessária para se produzir o efeito de distanciação que, em tudo o que o actor mostre ao público, seja nítido o gesto de mostrar. A noção de uma quarta parede que separa ficticiamente o palco do público e da qual provém a ilusão de o palco existir, na realidade, sem o público, tem de ser naturalmente rejeitada, o que, em princípio, permite aos actores voltarem-se directamente para o público. [...] As minhas palavras iniciais, ao tratar desta questão, desde logo revelam que a técnica que causa o efeito de distanciação é diametralmente oposta à que visa a criação da empatia. A técnica de distanciação impede o actor de produzir o efeito de empatia.

No entanto, o actor, ao esforçar-se para reproduzir determinadas personagens e para revelar o seu comportamento, não necessita de renunciar completamente ao recurso da empatia. Servir-se-á deste recurso na medida em que qualquer pessoa sem dotes nem pretensões teatrais o utilizaria para representar outra pessoa, ou seja, para mostrar o seu comportamento. [...] Consumá-lo-á, porém - ao invés do que é hábito no teatro vulgar, em que tal acto é consumado durante a própria representação e com o objectivo de levar o espectador a um acto idêntico -, apenas numa fase prévia, em qualquer momento da preparação do seu papel, nos ensaios. [...]

O actor terá de ler o seu papel assumindo uma atitude de surpresa e, simultaneamente, de contestação. Tem de pesar prós e contras e de apreender, na sua singularidade, não só a motivação dos acontecimentos sobre que versa a sua leitura, mas também o comportamento da personagem que corresponde ao seu papel e do qual vai tomando conhecimento. Não deverá considerar este como pré-estabelecido, como "algo para que não havia, de forma alguma, outra alternativa", "que seria de esperar num carácter como o desta pessoa". Antes de decorar as palavra, terá de decorar qual a razão da sua surpresa e em que momento contestou. Não deve excluir da configuração do seu papel qualquer destes dados. [...]

Visto que não se identifica com a personagem que representa, é-lhe possível escolher uma determinada perspectiva em relação a esta, revelar a sua opinião a respeito dela, incitar o espectador - também, por sua vez, não solicitado a qualquer identificação - a criticá-la. A perspectiva que adopta é crítico-social. [...]

No que respeita ao aspecto emocional, devo dizer que as experiências do efeito de distanciação realizadas nos espectáculos de teatro épico, na Alemanha, levaram-nos a verificar que também se suscitam emoções de espécie diversa das do teatro corrente. A atitude do espectador não será menos estética por ser crítica. O efeito de distanciação, quando descrito, resulta muito menos natural do que quando realizado na prática. [...]»


Fonte: Brecht, Bertolt. (1957) Estudos sobre teatro. Lisboa: Portugália Editora. 

Raymond Bayer, A estética aristotélica

Na obra História da Estética, Raymond Bayer elabora um percurso pela reflexão sobre a arte e o belo desde a Antiguidade até ao século XX, dando-nos a conhecer a evolução de uma área de conhecimento que só no séc. XVIII ganhou o termo que hoje a define: Estética.
Pareceram-me de particular interesse os seus esclarecimentos sobre o terror e a piedade, assim como a clarificação do termo catarse como objectivo final da tragédia.


«A tragédia segundo Aristóteles
Na parte da Poética em que estuda a tragédia, Aristóteles diferencia-a primeiro da epopeia. Depois distingue seis partes constitutivas da tragédia: o espectáculo, o canto, a elocução, os caracteres, o pensamento e a fábula. [...] 
Aristóteles chega a esta definição: "A tragédia é a imitação duma acção completa e acabada que tem uma dimensão determinada." É pois um todo que tem "um começo, um meio e um fim". A acção deve ser séria, completa, com um justo desenvolvimento valorizado por todos os atractivos que, segundo a sua espécie, se distribuem sob a forma de drama e não de narrativa, e conseguem, excitando a piedade ou o terror, purificar em nós ou purgar estes dois sentimentos. [...]
Aristóteles não fez mais do que extrair a sua teoria dos grandes trágicos gregos e em particular de Sófocles. Ora estes dois sentimentos existiam neles; havia piedade perante o sofrimento dos nossos semelhantes: era uma simpatia quase animal e de que aliás os animais são capazes. Para que este co-sofrimento exista, são precisos certos caracteres. Se se trata dum indivíduo absolutamente perverso, não há sofrimento trágico. [...] As personagens não devem portanto ser absolutamente perversas. Mas também não devem ser absolutamente inocentes, porque o nosso sentimento de justiça se insurgiria e não o suportaríamos. É preciso, pois, diz Aristóteles, que a personagem não seja nem inocente, nem inteiramente culpada: um ser semelhante ao que nós somos e com quem possamos simpatizar. Quando esse ser sofrer, não experimentaremos o sentimento de injustiça absoluta. Todas as personagens  da tragédia grega, diz Aristóteles, entram nesta definição. Achamos por vezes que o castigo não é proporcionado, como em Édipo, mas é em parte merecido. 
O terror difere da piedade. Não é exactamente um temor disfarçado. Aristóteles pensa que a piedade é reservada às personagens; o que nos inspira o terror são as catástrofes que vemos desenrolarem-se e que são causadas pela fatalidade ou anakê. O terror manifesta-se perante os desígnios inelutáveis do Destino. O terrível é sempre causado pelo destino. Logo, a piedade e o terror são não só diferentes psicologicamente, mas são mesmo inversos: quando temos medo, não temos piedade, e vice-versa; são portanto dois sentimentos exclusivos quando estão em primeiro plano. O terror e o temor são de natureza egoísta; a piedade é altruísta. [...]
O verdadeiro fim da tragédia é a catharsis, que tem dois sentidos possíveis. [...] Aristóteles foi buscar este conceito a Platão, mas dá-lhe um sentido novo, empregando-o no sentido fisiológico e médico. Para Platão, não é purgar, é desenvolver as paixões empregando-as; é por isso que Platão condena a tragédia que enfraquece a alma, o que é talvez fisiologicamente mais justo do que a concepção de Aristóteles. Aristóteles quis dizer que não purificamos as paixões, antes as eliminamos. Pelo seu desenvolvimento, elas eliminam-se.
Contrariamente a Platão, que vê na tragédia como na música um exercício perigoso das paixões, e portanto será levado a expulsar os artistas da sua República, Aristóteles, pela sua catártica, vendo nas artes, e mais especialmente na tragédia, uma medicação, um remédio contra o exagero e o excesso, a elas volta constantemente como a uma das sabedorias da sua filosofia. As artes são, à sua maneira, moderadoras; são obreiras do justo meio. As paixões são emoções violentas, mas já reduzidas sob a condição duma catártica.»


Fonte: Bayer, Raymond. (1993) História da Estética. Lisboa: Editorial Estampa.

Italo Calvino, Porquê ler os clássicos?

Em Porquê ler os clássicos?, Italo Calvino (1923-1985) analisa alguns dos «seus» clássicos, de Homero a Cesare Pavese passando por Flaubert, Tolstoi ou Hemingway, procurando definir o que pode ou deve ser considerado um clássico e para que servirá o seu conhecimento, na juventude ou em idade mais tardia. Apesar de nos emprestar as suas leituras, o escritor não deixa de recomendar a leitura directa dos originais evitando a interpretação alheia.

«Não se lêem os clássicos por dever ou por respeito, mas só por amor. Salvo na escola: a escola deve dar-nos a conhecer bem ou mal um certo número de clássicos entre os quais poderemos depois reconhecer os nossos clássicos. A escola destina-se a dar-nos instrumentos para exercermos uma opção; mas as opções que contam são as que se verificam fora e depois de todas as escolas.» (Calvino, 1994: 10)

O importante é retermos que estas são obras que «servem para compreender quem somos e aonde chegámos», como observa no final do artigo de onde retirámos este excerto. E se não servirem para nada? E têm de servir para alguma coisa além do prazer de descoberta do leitor?


«Porquê ler os clássicos?

1. Os clássicos são os livros de que se costuma ouvir dizer: «Estou a reler...» e nunca «Estou a ler...». [...]
2. Chamam-se clássicos os livros que constituem uma riqueza para quem os leu e amou; mas constituem uma riqueza nada menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas condições melhores para os saborear. [...]
3. Os clássicos são livros que exercem uma influência especial, tanto quando se impõem como inesquecíveis, como quando se ocultam nas pregas da memória mimetizando-se de inconsciente colectivo ou individual. [...]
4. De um clássico toda a releitura é uma leitura de descoberta igual à primeira.
5. De um clássico toda a primeira leitura é na realidade uma releitura. [...]
6. Um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer. [...]
7. Os clássicos são os livros que nos chegam trazendo em si a marca das leituras que antecederam a nossa e atrás de si a marca que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes). [...]
8. Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma vaga de discursos críticos sobre si, mas que continuamente se livra deles. [...]
9. Os clássicos são livros que quanto mais se julga conhecê-los por ouvir falar, mais se descobrem como novos, inesperados e inéditos ao lê-los de facto. [...]
10. Chama-se clássico um livro que se configura como equivalente do universo, tal como os antigos talismãs. [...]
11. O nosso clássico é o que não pode ser-nos indiferente e que nos serve para nos definirmos a nós mesmos em relação e se calhar até em contraste com ele. [...]
12. Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu primeiro os outros e depois lê esse, reconhece logo o seu lugar na genealogia. [...]
13. É clássico o que tiver tendência para relegar a actualidade para a categoria de ruído de fundo, mas ao mesmo tempo não puder passar sem esse ruído de fundo.
14. É clássico o que persistir como ruído de fundo mesmo onde dominar a actualidade mais incompatível. [...]»


Fonte: Calvino, Italo. (1994) Porquê ler os clássicos? Lisboa: Teorema.

  

Jean-Pierre Ryngaert, Léxico da intriga na dramaturgia clássica

Sendo verdade que a especificidade do texto dramático se alterou radicalmente no século XX, ao ponto de ser difícil caracterizá-lo, este léxico da intriga proposto por J.-P. Ryngaert constitui uma ferramenta útil quando se trabalha com dramaturgia clássica.


«LÉXICO DA INTRIGA
- De acordo com os princípios da dramaturgia clássica:

Exposição: Momento em que o dramaturgo fornece as informações necessárias para o entendimento da acção, apresenta as personagens e entra no assunto.
Para os clássicos, a exposição deve «instruir o espectador sobre o assunto e as circunstâncias principais, o lugar da cena e mesmo a hora em que acção principia, nome, estado, carácter e interesses das personagens principais».

: «As causas e os desígnios de uma acção participam na exposição do assunto e ocupam a abertura; não podem deixar de ser seguidos por obstáculos e contrariedades e por consequência formar um nó no centro ou no meio da intriga da peça, e a resolução deste nó é o desfecho ou fim da acção. (Abade Nadal, Observations sur la tragédie ancienne et moderne, citado por Jacques Scherer).

Peripécias: No singular, para Aristóteles, a peripécia é a inversão da situação do herói que conduz ao desenlace, por exemplo, a passagem da felicidade à infelicidade no desenlace trágico.
No plural, as peripécias são «golpes de teatro» ou «mudanças de sorte» que alteram subitamente a situação, surpreendem pela inversão da acção. Sublinham que no interior de uma intriga a situação do herói não pode ser igual.

Desenlace: «Uma inversão das últimas tendências do espectáculo, a derradeira peripécia, e um regresso de acontecimentos que alteram todas as aparências das intrigas.» (Abade d'Aubignac, Pratique du théâtre).
«O desenlace de uma peça de teatro compreende a eliminação do último obstáculo ou da derradeira peripécia e os acontecimentos que daí podem resultar; estes acontecimentos são por vezes designados pelo termo catástrofe.» (Jacques Sherer, La Dramaturgie classique en France.) [...]»


Fonte: Ryngaert, Jean-Pierre. (1992) Introdução à análise do teatro. Porto: Edições Asa.

Abel Neves, O texto dramático

Abel Neves, cuja voz interessa ouvir quando se fala de teatro, integrou a Comuna durante doze anos (1979-1991), onde também trabalhou como actor, e esteve ligado ao nascimento do Teatro da Serra de Montemuro (1995). São dezenas as peças que escreveu: Amadis, Terra, El Gringo, Lobo-Wolf, Inter-rail, Além as estrelas são a nossa casa, Supernova, Vulcão, entre outras. 
Poeta, romancista e dramaturgo, publica em 2002 Algures entre a resposta e a interrogação na Cotovia, livro que reúne vários ensaios em volta do teatro. Os excertos aqui publicados foram retirados de duas comunicações suas, a primeira data de 1998 no Fórum Nacional de Teatro Amador em Aveiro e a segunda de 2000 do Encontro Escola da Escrita e da Leitura na Associação Portuguesa de Escritores, presentes no  livro citado.

Numa entrevista de 2010, Abel Neves fala assim da escrita para teatro em Portugal:

«"Vale a pena estarmos entusiasmados com aquilo que fazemos", afirma. E é desse entusiasmo que sente falta quando se fala, "ou não se fala", do acto da escrita para teatro em Portugal. "Quase não há crítica, nem divulgação ou edição. Aqui parece que as instituições têm vergonha dos autores que existem", diz. E não se limita a criticar, tendo mesmo feito planos, orçamentados, de um centro de dramaturgia portuguesa. Todas as instituições a que o propôs (e foram muitas) chumbaram a ideia. "É preciso tornar o teatro vivo, dinamizar encontros, editar os textos. Não para que se fale deste ou daquele autor, mas das obras que vamos fazendo.", diz»


«No teatro, o texto tira os pecados do mundo? 

[...] Criado e sugerido pelo dramaturgo o texto não é, apesar disso, a lei do teatro. Será o início de uma aventura. E pode ficar eternamente esperando que alguém - actor, encenador - lhe encontre o interesse e muitas vezes, a maior parte das vezes, será necessário que esse alguém tenha um interesse primeiro que seja simpático com esse outro ainda oculto no texto. Depois haverá espectáculo. Neste caso o texto é o núcleo de um objecto criador, isto entendido como a coisa a partir da qual tudo vai estar em expansão e produzindo os elementos espectaculares e assim, no teatro, o texto será o que é, uma matéria-prima entre as matérias. Mas noutros casos, o texto não é primeiro. [...]


O texto para o teatro, uma natureza morta, digo.

[...] Os textos para o teatro estão mortos como argila. Ou como outra coisa qualquer que esteja morta. O que é um modo de lhes atribuir vida, se pensarmos que nada morre. O livro é um objecto morto, se o interrogarmos, a resposta será tão inesperada, que a nossa cabeça andará à roda, e pensaremos que há vida dentro dele. E a verdade é que há, um texto. Mas um texto, sendo parte fundamental de um livro, é obra a pedir constante ressurreição. Os leitores ocupam-se directamente dessa magia. No teatro, essa tarefa está quase por inteira no actor, e com ele somos levados para outros recantos da vida onde podemos experimentar, então, o prazer, ou desprazer, das coisas ideais.  Aí, sim - e os tais gregos sabiam-no bem - podemos reconhecer as venturas e desventuras do nosso mundo. Mas o texto para o teatro, esse texto que está nos livros e que é importado pela memória dos actores, o que é ele antes de ganhar a vitalidade do palco? Uma natureza morta, digo. [...]»


Fonte: Neves, Abel. ( 2002) Algures entre a resposta e a interrogação. Lisboa: Edições Cotovia.


Grotowski, O "actor santo"

Considerando o trabalho do actor como a verdadeira essência da arte teatral, Grotowski assenta os seus espectáculos/experimentos na colaboração estreita entre actor/encenador e actor/espectador. Mais do que a aprendizagem de uma técnica específica para enfrentar as suas criações, procura estabelecer com os actores uma relação de absoluta confiança que permita o desbloqueio de inibições e a queda da 'máscara social' que todo o ser humano carrega.
Deixo aqui considerações que recolhi em entrevistas e textos vários assinados pelo mestre polaco.


«[...] O que é o teatro? O que tem ele de único? Que pode fazer que o filme e a televisão não podem? Dois conceitos concretos cristalizaram-se: o teatro pobre e a representação como um ato de transgressão. [...]
Existe algo de incomparavelmente íntimo e produtivo no trabalho com um ator que confia em mim. Ele deve ser atencioso [atento?], seguro e livre, pois nosso trabalho consiste em explorar ao máximo suas possibilidades. Seu desenvolvimento é atingido pela observação, pela perplexidade e pelo desejo de ajudar; o meu desenvolvimento se reflete nele, ou, melhor, está nele - e nosso desenvolvimento comum transforma-se em revelação. Não se trata de instruir um aluno, mas de se abrir completamente para outra pessoa, na qual é possível o fenómeno de "nascimento duplo e partilhado". O ator renasce - não somente como ator mas como homem - e, com ele, renasço eu. É uma maneira estranha de se dizer, mas o que se verifica, realmente, é a total aceitação de um ser humano por outro. [...]

Não me entendam mal. Falo de "santidade" como um descrente. Quero dizer: uma "santidade secular". Se o ator, estabelecendo para si próprio um desafio, desafia publicamente os outros e, através da profanação e do sacrilégio ultrajante, se revela, tirando sua máscara do cotidiano, torna possível ao espectador empreender um processo idêntico de autopenetração. [...] A técnica do "ator santo" é uma técnica indutiva (isto é, uma técnica de eliminação), enquanto a do "ator cortesão" é uma técnica dedutiva (isto é, um acúmulo de habilidades). [...]
O fato importante é o uso do papel como um trampolim, um instrumento pelo qual se estuda o que está oculto por nossa máscara cotidiana - a parte mais íntima da nossa personalidade - a fim de sacrificá-la, de expô-la.
É um excesso não só para o ator, mas também para a plateia. O espectador compreende, consciente ou inconscientemente, que se trata de um convite para que ele faça o mesmo, e isto termina por despertar oposição ou indignação, porque nossos esforços diários têm a finalidade de esconder a verdade sobre nós, não apenas do mundo, mas também de nós mesmos. [...] Se eu tivesse de expressar tudo isto numa só frase, diria que se trata de um problema de dar-se. Devemos nos dar totalmente, em nossa mais profunda intimidade, com confiança, como nos damos no amor. [...]»


Fonte: Grotowski, Jerzy. (1971) Grotowski: em busca de um Teatro Pobre. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira.

Grotowski, O que é o Teatro Pobre?

Em 1959 Jerzy Grotowski (1933/1999) cria, em Wroclaw (Polónia), o Teatro Laboratório onde desenvolverá as suas experiências do que designou por Teatro Pobre. Procura com este teatro, despojado de tudo o que não é essencial à relação actor-espectador, distinguir o teatro de outras categorias do espectáculo (nomeadamente, o cinema), centrando-se no trabalho do actor através da "via negativa", ou seja, do aniquilamento das suas resistências e bloqueios. 
O trabalho de Grotowski no Teatro Laboratório de Wroclaw durará uma década (1959-69), mas a sua influência perdurará no teatro contemporâneo.


«[...] Em primeiro lugar, tentamos evitar o ecletismo, resistir ao pensamento de que o teatro é uma combinação de matérias. Estamos tentando definir o que significa o teatro distintamente, o que separa esta atividade das outras categorias de espetáculo. Em segundo lugar, nossas produções são investigações do relacionamento entre ator e plateia. Isto é, consideramos a técnica cênica e pessoal do ator como a essência da arte teatral. [...]

Não educamos um ator, em nosso teatro, ensinando-lhe alguma coisa: tentamos eliminar a resistência de seu organismo a este processo psíquico. O resultado é a eliminação do lapso de tempo entre impulso interior e reação exterior, de modo que o impulso se torna já uma reação exterior. Impulso e ação são concomitantes: o corpo se desvanece, queima, e o espectador assiste a uma série de impulsos visíveis. Nosso caminho é uma via negativa, não uma coleção de técnicas, e sim erradicação de bloqueios. [...]

Pela eliminação gradual de tudo o que se mostrou supérfluo, percebemos que o teatro pode existir sem maquilhagem, sem figurino especial e sem cenografia, sem um espaço isolado para representação (palco), sem efeitos sonoros e luminosos, etc. Só não pode existir sem o relacionamento ator-espectador, de comunhão perceptiva, direta, viva. Trata-se, sem dúvida, de uma verdade teórica antiga, mas quando rigorosamente testada na prática destrói a maioria das nossas ideias vulgares sobre teatro. Desafia a noção de teatro como síntese de disciplinas criativas diversas - literatura, escultura, pintura, arquitetura, iluminação, representação (sob o comando de um diretor). Este "teatro sintético" é o teatro contemporâneo, que chamamos de "Teatro Rico" - rico em defeitos. 

[...] Não há dúvida de que quanto mais o teatro explora e usa as fontes mecânicas, mais permanece tecnicamente inferior ao cinema e à televisão. Consequentemente, proponho a pobreza no teatro. Renunciamos a uma área determinada determinada para o palco e para a plateia: para cada montagem, um novo espaço e desenhado para os atores e para os espectadores.  Dessa forma, torna-se possível infinita variedade no relacionamento entre atores e público. [...]

Abandonamos os efeitos de luz, o que revelou amplas possibilidades de uso, pelo ator, de focos estacionários, mediante o emprego deliberado de contrastes entre sombras e luz forte. [...]

Também desistimos de usar maquilhagem, narizes e barrigas postiças, enfim, tudo o que o ator geralmente coloca, antes do espetáculo, no camarim. Percebemos que era profundamente teatral para o ator transformar-se de tipo para tipo, de caráter para caráter, de silhueta para silhueta - à vista do público - de maneira pobre, usando somente seu corpo e seu talento. [...] 

A eliminação de música (ao vivo ou gravada) não produzida pelos atores permite que a representação em si se transforme em música através da orquestração de vozes e do entrechoque de objetos. Sabemos que o texto em si não é teatro, que só se torna teatro quando usado pelo ator, isto é, graças às inflexões, à associação de sons, à musicalidade da linguagem.
A aceitação da pobreza no teatro, despojado este de tudo que não lhe é essencial, revelou-nos não somente a espinha dorsal do teatro como instrumento, mas também as riquezas profundas que existem na verdadeira natureza da forma de arte. [...]»


Fonte: Grotowski, Jerzy. (1971) Grotowski: em busca de um Teatro Pobre. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira.

Meyerhold, A reconstrução do Teatro (1930)

Depois da Revolução de Outubro de 1917, Meyerhold empenhou-se na reconstrução do Teatro como instrumento de propaganda para a formação do homem novo que a nova realidade social preconizava. Os excertos aqui apresentados foram retirados de uma conferência de 1930, onde o encenador e actor russo caracteriza o tipo de teatro político a que aspira, um teatro revolucionário que já não apela ao anti-esteticismo, mas a um espectáculo que se dirija não só à actividade cerebral do público, mas também à sua sensibilidade.
O empenho de Meyerhold na defesa de um teatro proletário não impediu os ataques de que foi alvo pelos que tinham um entendimento bastante estreito da arte teatral. Em sua defesa respondeu na Conferência dos Diretores (1936), aos que o acusavam de "formalismo", que na obra de arte autêntica «forma e conteúdo são indissociáveis», que se a simplicidade é essencial na arte «cada artista compreende a simplicidade a seu modo»  e que a realização de experiências é essencial à vida artística. Em vão.
 
 
«[...] Já que queremos um teatro que seja um instrumento de propaganda, é natural pedir que do alto da cena sejam lançadas certas ideias ao público. [...] O papel das imagens e das situações cénicas é o de conduzir o espectador a refletir sobre os mesmos temas que são debatidos nas reuniões. Estimulamos a atividade cerebral do público, forçamo-lo a pensar e discutir. Este é um aspeto do teatro. Mas há um outro que faz apelo à sua sensibilidade. Sob a ação do espetáculo, a plateia deve passar por todo um labirinto de emoções. O teatro não atua somente sobre o cérebro, mas também sobre o "sentimento". Daí ser retórico, não ser mais teatro, mas uma sala de conferências, se apresenta diálogos tirados de uma dramaturgia limitada às conversações. E não podemos aceitar isto. [...] Não é suficiente insuflar no espectador uma ideia ou sugerir-lhe as deduções imediatas. A tarefa dos personagens que agem no palco não é de modo algum fazer a demonstração de qualquer ideia do autor, do diretor ou do ator. A luta e os conflitos cénicos não são teses às quais opõem-se antíteses. Não é para isto que o público vem ao teatro. [...]
 
É preciso levar em conta a necessidade que sente o espectador moderno de assistir a espetáculos destinados não mais a trezentas ou quinhentas pessoas (o proletariado evita os teatros "intimistas"), mas a dezenas de milhares (vejam as massas que enchem os estádios de futebol, voleibol, hockey e onde, amanhã, mostraremos jogos esportivos teatralizados). [...] Todo espetáculo criado atualmente aspira a uma participação do público na ação que se desenrola na cena. [...]
 
Os diálogos e monólogos de tese, os métodos esquemáticos de uma propaganda frequentemente estúpida, os personagens esquematizados que são sempre cheios de virtude, se são "vermelhos", e de defeitos, se são "brancos" - tudo isto é atirar no vazio.[...]
 
Chegamos a um momento em que não temos mais necessidade de nos mantermos presos à antiga palavra-de-ordem: "Nenhum esteticismo na cena!", palavra-de-ordem lançada por nós antigamente. 
 
[...] Nossa arte é diferente da arte feudal ou da arte da burguesia. Não se trata mais de evitar a beleza, custe o que custar, com a condição de concordarmos sobre o que entendemos como beleza. Mais de que nunca nosso país necessita de beleza. [...]»
 
 
Fonte: Conrado, Aldomar (Org.) (1969) O teatro de Meyerhold. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
 

António Freire, Do Destino na Tragédia Grega

Porque por vezes fazemos uma leitura simplista da importância do Destino no desenvolvimento das tramas das Tragédias Gregas, o livro de António Freire "O Teatro Grego" pode ajudar-nos a compreender a forma como o fatalismo era entendido pelos gregos, havendo lugar para uma leitura de cariz popular e outra de âmbito filosófico. Apoiando-se na crítica de vários helenistas, António Freire considera que a fatalidade não é um elemento essencial à Tragédia. Dá como exemplo o "Rei Édipo" de Sófocles, afirmando que Édipo age livremente, apesar do oráculo prever a desgraça que se abate sobre ele para expiar a culpa do pai, e que, aos olhos dos espectadores da Grécia Antiga, este mereceria o castigo sofrido não por ser incestuoso e parricida, porque involuntário, mas por não dominar as suas paixões, mostrando-se irado, arrogante e injusto.
A leitura de Deniz-Jacinto vai no mesmo sentido, por isso também aqui coloquei um excerto do seu livro "Teatro III".
 
 
«[...] Há uma objecção que pode oferecer alguma dificuldade a leitores não familiarizados com a subtil dialéctica filosófica: é a predição oracular de desgraças fatais, como no caso de Laio e de Édipo.
O facto de sucederem acontecimentos vaticinados, quer pelo oráculo de Apolo, quer pelo adivinho Tirésias (na Antígona de Sófocles), não permite inferir daí fatalismo algum. A liberdade das personagens mantém-se intacta, e isso é o que importa para excluir o fatalismo. A predição é feita em virtude da previsão infalível da actuação livre das criaturas. [...] Não se dão os factos porque Deus os prevê ou prediz, mas Deus prevê-os ou predi-los porque eles realmente se dão e lhe estão presentes. [...]»
 
Fonte: Freire, António. (1997) O Teatro Grego. Braga: Edições APPACDM.
 
 
«[...] A moira, o destino, não é então aquela potência arbitrária, caprichosa e cega que, durante muito tempo, foi apresentada como móbil da tragédia grega. Com este sentido parece que não podemos incluir o destino na motivação trágica. Mas podemos, por certo, aceitar relações de causa-efeito, um determinismo que a partir de um erro cometido pelo herói, se cumpre como uma reacção em cadeia através das vicissitudes do drama.
O herói trágico pode trazer ainda em si mesmo, como herança, uma tara que o expõe à provação. Ele não é pessoalmente culpado, no sentido que hoje podemos atribuir à palavra, mas deve limpar-se da chaga original mediante a aceitação das consequências dela, e depurar-se da mácula por intermédio da dor que, simultaneamente, será a grande mestra da vida. [...]»
 
Fonte: Deniz-Jacinto. (1992) Teatro - III (A Tragédia). Porto: Lello & Irmão Editores.

Na corte de Luis XIV (1638-1715)

O facto de grandes nomes do teatro francês terem vivido durante a corte de Luís XIV, e terem ajudado a glorificar o monarca (Corneille 1606-1684; Molière 1622-1673; Boileau 1636-1711; Racine 1639-1699), leva-me à curiosidade de olhar a corte francesa, particularmente na sua mudança para Versalhes (que ocorreu, oficialmente, em 1682). Foi Stendhal quem disse que a corte de Luís XIV nunca foi senão uma mesa de jogo!


«[...] Hoje, o nome "Versalhes" evoca não apenas um edifício mas um mundo social, o da corte e, especialmente, a ritualização da vida quotidiana do rei. As acções de levantar-se pela manhã e deitar-se à noite foram transformadas nas cerimónias de lever e de coucher - com a primeira dividida em duas etapas, petit lever, menos formal e grand lever, mais formal. As refeições reais foram também ritualizadas. Luís podia comer mais formalmente (o grand couvert) ou menos formalmente (o petit couvert) mas, até mesmo as ocasiões menos formais, très petit couvert, incluíam três pratos e muitas iguarias. Essas refeições eram tomadas diante de uma audiência. Era uma honra ter permissão para assistir ao rei a comer, uma honra maior poder falar ao rei durante a refeição, uma honra suprema ser convidado a servir-lhe a comida ou comer com ele. Todos os presentes usavam chapéu à excepção do rei, mas tiravam-no para falar ao rei ou se este lhes dirigisse a palavra, a menos que estivessem à mesa. [...]

A vida quotidiana do rei foi composta de acções que não eram tão-somente repetitivas, mas carregadas de significado simbólico porque eram desempenhadas em público por um actor, cuja pessoa era sagrada. Luís esteve sobre o palco quase toda a sua vida desperta. Os objectos materiais intimamente ligados ao rei tornaram-se, por sua vez, sagrados, porque o representavam. Consequentemente, era uma ofensa voltar as costas ao retrato do rei, entrar no seu dormitório vazio sem uma genuflexão, ou usar chapéu na sala onde a mesa estivesse posta para o jantar do rei. [...]

Após a sua instalação em Versalhes em 1682, o rei abria os seus apartamentos ao público (isto é, à classe alta), três vezes por semana para "divertimentos" tais como jogos de cartas e bilhares, nos quais "o Rei, a Rainha e toda a Família Real descem das suas alturas para jogar com os membros da assembleia". [...]

No decurso do século XVII, uma revolução intelectual teve lugar entre determinadas elites, em algumas partes da Europa Ocidental (França, Inglaterra, República Holandesa e Itália do norte, pelo menos), que questionou as presunções desta mentalidade mística. [...] A nova mentalidade foi aquela na qual o mundo era visto como uma máquina e não como um organismo ou "animal". [...] Veio o incremento da fé na razão e o aumento do que é conveniente chamar "relativismo cultural"; por outras palavras, a ideia de que planos sociais e culturais especiais não são determinados por Deus, ou necessários, mas contingentes. Variam de um lugar para outro e podem ser alterados de vez em quando. [...] Em suma, os reis perdiam a sua roupagem simbólica. Estavam a tornar-se desmistificados. [...]»


Fonte: Burke, Peter. (2007) A construção de Luís XIV. Casal de Cambra: Caleidoscópio.


Platão, Sobre a mimese na polis

Escrito no século IV a.C., a República de Platão opera uma clivagem, que permanecerá até aos dias de hoje, entre o discurso dos poetas e o discurso dos filósofos, dando conta da influência perniciosa da mimese sobre todos quantos não estivessem cientes de se tratar de uma cópia de cópia, porque imitação da aparência, deixando o imitador 'três pontos afastado da realidade'. Começa então a indagação sobre a utilidade do Teatro para a cidade e a acusação de fomentar a irracionalidade e a cobardia em vez da moderação a que conduziria a razão.
«[...] A nossa doutrina sobre a poesia [...] a de não aceitar a parte da poesia de carácter mimético. [...] Aqui entre nós (porquanto não ireis contá-lo aos poetas trágicos e a todos os outros que praticam a mimese), todas as obras dessa espécie se me afiguram ser a destruição da inteligência dos ouvintes, de quantos não tiverem como antídoto o conhecimento da sua verdadeira natureza. [...] Estamos, ao que parece, suficientemente de acordo: que o imitador não tem conhecimentos que valham nada sobre aquilo que imita, mas que a imitação é uma brincadeira sem seriedade. [...] A arte de imitar executa as suas obras longe da verdade, e, além disso, convive com a parte de nós mesmos avessa ao bom-senso, sem ter em vista, nesta companhia e amizade, nada que seja são ou verdadeiro. [...]

A poesia mimética, dizíamos nós, imita homens entregues a acções forçadas ou voluntárias, e que, em consequência de as terem praticado, pensam ser felizes ou infelizes, afligindo-se ou regozijando-se em todas essas circunstâncias. [...]

E quanto ao amor, à ira e a todas as paixões penosas ou aprazíveis da alma, que afirmámos acompanharem todas as nossas acções, não produz em nós os mesmos efeitos a imitação poética? Porquanto os rega para os fortalecer, quando devia secá-los, e os erige nossos soberanos, quando deviam obedecer, a fim de nos tornarmos melhores e mais felizes, em vez de piores e mais desgraçados. [...]

Quanto à poesia, somente se devem receber na cidade hinos aos deuses e encómios aos varões honestos e nada mais. Se, porém, acolheres a Musa aprazível na lírica ou na epopeia, governarão a tua cidade o prazer e a dor, em lugar da lei e do princípio que a comunidade considere, em todas as circunstâncias, o melhor.»


Fonte: Platão. (1993) A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Alberto Pimenta, Sobre a normatividade poética

As reflexões de Alberto Pimenta no livro "O Silêncio dos poetas" ajudam-nos a compreender a obra de arte literária. Se o teatro não é literatura, esteve durante longo período de tempo votado ao textocentrismo ou logocentrismo, pelo que as considerações de Pimenta sobre o que a arte é ou procura ser, sobre a função da arte literária, comunicação vs expressão, constituem uma valiosa contribuição para reflectirmos sobre as pretensões do teatro que cada um de nós quer fazer.
 
 
«[...] O áureo caminho da ideal coincidência e integração do subjectivismo expressivo e da função comunicativa objectiva era justamente o caminho trilhado pelo sistema normativo poetológico, ou - mais adequado será dizer: esse sistema visava justamente essa coincidência e integração. Em toda a Poética de Aristóteles é evidente e explícito o esforço de conciliar a liberdade subjectiva de expressão com a necessidade social de entendimento. [...]
 
Até ao século XVIII [...] as teorias poéticas que se foram sucedendo, e mutuamente copiando, apenas superficialmente variam esse compromisso inicial que vincula a arte literária a uma missão ético-social e faz com que o gosto ocidental (pós-socrático e, naturalmente, cristão) se haja chegado a identificar belo e bem como categorias homólogas, indissoluvelmente ligadas. [...]
De acordo com a norma poetológica fundamental, não é o estilo (ou seja, a técnica sistemática de transformação do médium) que faz o tema elevado ou trivial, mas é a elevação ou a trivialidade a priori do tema que determina o estilo. [...]
 
Aristóteles fala de poesia sublime e vulgar, e esta oposição, explicitada sobretudo na oposição tragédia/comédia, reflecte desde início a organização social nas suas duas classes: a classe dos senhores, voltada para cima, onde normalmente é a residência dos deuses, e a classe dos servos, voltada para baixo, onde normalmente é o trabalho e a produção. Enquanto a tragédia representa a reverência perante a ordem que vem de cima, a comédia ocupa-se da 'baixa humanidade'. [...] Não é só o desfecho que distingue radicalmente estes dois géneros e está a priori fixado, mas também a construção e a intenção. Em termos claros e evidentes, poderiam reduzir-se os dois géneros às seguintes combinações: se há senhores logrados por deuses ou por outros senhores, é trágico; se há servos logrados por servos ou por senhores, é cómico; as restantes combinações estão fora do âmbito do sistema poetológico. [...]
 
Pelo século XVIII, este estado de 'graça' começou a desagregar-se, dentro do processo geral de desagregação de toda a estrutura da sociedade antiga, que se baseava numa 'razão' transcendente e não racional e, menos ainda, existencial.  Esta libertação da arte literária da transcendência absoluta de estilos e géneros faz portanto parte de uma libertação da consciência operada ao longo do processo da revolução burguesa.»
 
 
Fonte: Pimenta, Alberto. (2003) O silêncio dos poetas. Lisboa: Edições Cotovia.

Artaud, Teatro da Crueldade

No livro de 1938, Antonin Artaud (1896-1948) explica em que consiste o novo teatro que preconiza: um teatro já não centrado na palavra, que não exclui, mas na sensação, procurando esbater a distância entre actores e público (teatro e vida) ao propor uma encenação com carácter ritualístico.  As suas ideias ganharam força, particularmente a partir da década de 60 do séc. XX, pelo trabalho de grupos como o Living Theatre (EUA) ou o Teatro Oficina (Brasil).
 
 
«[...] Antes de mais nada, temos de reconhecer que o teatro, tal como a peste é um delírio e é também comunicativo. [...] Tal como a peste, o teatro refunde todas as ligações entre o que é e o que não é, entre a virtualidade do possível e o que já existe na natureza materializada. [...] No teatro autêntico, uma peça perturba o repouso dos sentidos, liberta o inconsciente recalcado, estimula uma espécie de revolta virtual(que, aliás, só resultará plenamente se permanecer virtual), e impõe à colectividade reunida uma atitude simultaneamente difícil e heroica. [...]
Se o teatro essencial se compara à peste não é por ser contagioso mas por, tal como a peste, ser a revelação, a apresentação, a exteriorização dum profundo íntimo de crueldade latente, por meio da qual todas as potencialidades perversas do espírito se fixam, quer sobre um indivíduo, quer sobre um povo. [...] O teatro, como a peste, é uma crise que se resolve ou pela morte ou pela cura. [...] E, para concluir, constatamos que, do ponto de vista humano, a acção do teatro, tal como a da peste, é benéfica, pois, ao compelir os homens a verem-se tais como são, faz que a máscara tombe, põe a nu a mentira, o relaxe, a baixeza, a hipocrisia deste nosso mundo; vence a inércia asfixiante da matéria que se apodera até do mais claro testemunho dos sentidos; e, ao revelar às colectividades humanas o seu poder sombrio, a sua força oculta, incita-as a tomarem, em face do destino, uma atitude superior e heroica, que nunca teriam assumido sem o teatro. [...]
 
Por que razão é que no teatro, pelo menos no teatro como o conhecemos, na Europa, ou melhor, no Ocidente, tudo o que é especificamente teatral, ou seja, tudo o que não pode ser expresso pela fala, pelas palavras [...] é relegado para segundo plano? [...] Afirmo que o palco é um lugar físico concreto que deve ser preenchido e a que se tem de dar uma linguagem própria concreta.
Afirmo que esta linguagem concreta, destinada aos sentidos e independente do discurso, tem de primeiro satisfazer os sentidos. [...] Esta linguagem criada para os sentidos deve, desde início, cuidar de os satisfazer. [...] Esta poesia, intensamente difícil e complexa, surge sob muitos aspectos, e em especial, os de todos os meios de expressão viáveis no palco, como a música, a dança, a arte plástica, a pantomima, a mímica, a gesticulação, a entoação, a arquitectura, a iluminação, o cenário. [...]
 
Tudo, nesta maneira prática e activa de encarar a expressão no palco, nos leva a afastar-nos da concepção actual humana e psicológica do teatro, em favor duma preponderância religiosa e mística de que o nosso teatro perdeu por completo o sentido.»
 
 
Fonte: Artaud, Antonin. (1989) O teatro e o seu duplo. Lisboa: Fenda.

Pedro Barbosa, Teatro e Quotidiano (teatro-de-rua)

Eis um excerto do livro "Teoria do Teatro Moderno - A hora zero" de Pedro Barbosa (1982). Além de outras reflexões sobre Dramaticidade e Teatralidade, sobre a falência do Realismo no Teatro, sobre as relações entre Teatro e Televisão e Teatro e Rádio, as citações transcritas abordam as particularidades do Teatro de Rua, especificamente.
 
 
«[...] É preciso distinguir teatro-ao-ar-livre de teatro-de-rua: o primeiro inclui o segundo, mas o segundo não corresponde ao primeiro.
A rua, ao contrário de um estádio, de um parque, de uma praça, não é um lugar onde se estaciona: é o lugar onde se circula, por onde o quotidiano escorre sem paragem. E é aí que o teatro-de-rua vai buscar a sua especificidade. A eleição da rua como lugar cénico implica a fusão da arte com a vida, a infiltração do teatro no quotidiano e, ainda, a mobilidade, o movimento constante ou fugaz, a necessidade de surpreender um público anónimo, atarefado e movediço. [...]
 
Uma vez eliminados os assentos fixos e a divisão rígida do espaço, novas relações entre o público e o espectáculo começam a desenhar-se. Antes de mais nada o teatro vai surpreender um público novo, com grandes probabilidades de atingir aquele que nunca vai ao teatro. [...]
 
Peter Schumann, fundador do Bread and Puppet Theatre, retira da prática alguns ensinamentos: "Na rua, as pessoas não são sensíveis a um teatro realista; é preciso criar metáforas, fantasia, espectáculos bruscos, violentos, sem psicologia; condensar toda uma história em alguns gestos, em algumas palavras; ou então organizar longas paradas, desfiles, cortejos." [...]
 
E aqui chegamos ao momento de compreender por que motivo o teatro-de-rua se associa quase sempre ao combate político, por que motivo a ruptura de cena se liga também a uma ruptura política. É que a rua não satisfaz apenas uma vanguarda estética que recusou a cena tradicional; ela satisfaz também uma vanguarda política que recusa os circuitos burocráticos e comerciais da cultura. Na sociedade de consumo, a rua significa a libertação do teatro enquanto mercadoria. O teatro de rua trabalha em directo, do produtor ao consumidor, dispensando intermediários. Assim se compreende o privilégio concedido à rua pelo teatro militante: ela representa uma tentativa de fuga integral em relação ao sistema e ao aparelho cultural. Toda a crítica da ideologia dominante, se não puser em causa a própria instituição que a suporta, traduz-se numa vitória para a instituição, e portanto num reforço da ideologia.»
 
 
Fonte: Barbosa, Pedro. (2003) Teoria do teatro moderno - A hora zero. Porto: Edições Afrontamento.
 

Stanislavski, A preparação do actor

Stanislavski (1863-1938), fundador com Danchenko do Teatro de Arte de Moscovo, procurou agrupar e aprofundar, no que ficou conhecido por Sistema ou Método, um conjunto de técnicas que conduzissem o actor a uma representação mais realista em cena, solicitada pela estética naturalista.
 
 
«Infelizmente, a disposição criadora natural quase nunca é espontânea. Em casos excepcionais ela de facto aparece, e então o actor tem um desempenho magnífico. No caso frequentíssimo em que o actor não se consegue pôr no devido estado de espírito, ele diz: 'Não estou disposto'. Isto significa que ou seu equipamento criador não está funcionando bem, ou não está funcionando de todo, ou então foi substituído por hábitos mecânicos. Teria sido o abismo da boca de cena que lhe desorganizou as funções? Ou será que ele compareceu perante o público com um papel semi-acabado, com falas e acções nas quais nem ele mesmo pôde acreditar? [...]
 
Uma verdade artística é difícil de desencavar, mas nunca perde o interesse. Um papel construído à base de verdades cresce, ao passo que fenece o que se baseou em clichés. [...] Se pronunciarem alguma fala ou fizerem alguma coisa mecanicamente, sem compreender plenamente quem são, de onde vieram, por quê, o que querem, para onde vão e que farão quando chegarem lá, estarão representando sem imaginação. Esse período, quer seja curto, quer longo, será irreal, e vocês não passarão de autómatos, de máquinas às quais se deu corda.»
 
 
Fonte: Stanislavski, Konstantin. (2001) A preparação do actor. Civilização Brasileira.