Abel Neves, O texto dramático

Abel Neves, cuja voz interessa ouvir quando se fala de teatro, integrou a Comuna durante doze anos (1979-1991), onde também trabalhou como actor, e esteve ligado ao nascimento do Teatro da Serra de Montemuro (1995). São dezenas as peças que escreveu: Amadis, Terra, El Gringo, Lobo-Wolf, Inter-rail, Além as estrelas são a nossa casa, Supernova, Vulcão, entre outras. 
Poeta, romancista e dramaturgo, publica em 2002 Algures entre a resposta e a interrogação na Cotovia, livro que reúne vários ensaios em volta do teatro. Os excertos aqui publicados foram retirados de duas comunicações suas, a primeira data de 1998 no Fórum Nacional de Teatro Amador em Aveiro e a segunda de 2000 do Encontro Escola da Escrita e da Leitura na Associação Portuguesa de Escritores, presentes no  livro citado.

Numa entrevista de 2010, Abel Neves fala assim da escrita para teatro em Portugal:

«"Vale a pena estarmos entusiasmados com aquilo que fazemos", afirma. E é desse entusiasmo que sente falta quando se fala, "ou não se fala", do acto da escrita para teatro em Portugal. "Quase não há crítica, nem divulgação ou edição. Aqui parece que as instituições têm vergonha dos autores que existem", diz. E não se limita a criticar, tendo mesmo feito planos, orçamentados, de um centro de dramaturgia portuguesa. Todas as instituições a que o propôs (e foram muitas) chumbaram a ideia. "É preciso tornar o teatro vivo, dinamizar encontros, editar os textos. Não para que se fale deste ou daquele autor, mas das obras que vamos fazendo.", diz»


«No teatro, o texto tira os pecados do mundo? 

[...] Criado e sugerido pelo dramaturgo o texto não é, apesar disso, a lei do teatro. Será o início de uma aventura. E pode ficar eternamente esperando que alguém - actor, encenador - lhe encontre o interesse e muitas vezes, a maior parte das vezes, será necessário que esse alguém tenha um interesse primeiro que seja simpático com esse outro ainda oculto no texto. Depois haverá espectáculo. Neste caso o texto é o núcleo de um objecto criador, isto entendido como a coisa a partir da qual tudo vai estar em expansão e produzindo os elementos espectaculares e assim, no teatro, o texto será o que é, uma matéria-prima entre as matérias. Mas noutros casos, o texto não é primeiro. [...]


O texto para o teatro, uma natureza morta, digo.

[...] Os textos para o teatro estão mortos como argila. Ou como outra coisa qualquer que esteja morta. O que é um modo de lhes atribuir vida, se pensarmos que nada morre. O livro é um objecto morto, se o interrogarmos, a resposta será tão inesperada, que a nossa cabeça andará à roda, e pensaremos que há vida dentro dele. E a verdade é que há, um texto. Mas um texto, sendo parte fundamental de um livro, é obra a pedir constante ressurreição. Os leitores ocupam-se directamente dessa magia. No teatro, essa tarefa está quase por inteira no actor, e com ele somos levados para outros recantos da vida onde podemos experimentar, então, o prazer, ou desprazer, das coisas ideais.  Aí, sim - e os tais gregos sabiam-no bem - podemos reconhecer as venturas e desventuras do nosso mundo. Mas o texto para o teatro, esse texto que está nos livros e que é importado pela memória dos actores, o que é ele antes de ganhar a vitalidade do palco? Uma natureza morta, digo. [...]»


Fonte: Neves, Abel. ( 2002) Algures entre a resposta e a interrogação. Lisboa: Edições Cotovia.