Grotowski, O "actor santo"

Considerando o trabalho do actor como a verdadeira essência da arte teatral, Grotowski assenta os seus espectáculos/experimentos na colaboração estreita entre actor/encenador e actor/espectador. Mais do que a aprendizagem de uma técnica específica para enfrentar as suas criações, procura estabelecer com os actores uma relação de absoluta confiança que permita o desbloqueio de inibições e a queda da 'máscara social' que todo o ser humano carrega.
Deixo aqui considerações que recolhi em entrevistas e textos vários assinados pelo mestre polaco.


«[...] O que é o teatro? O que tem ele de único? Que pode fazer que o filme e a televisão não podem? Dois conceitos concretos cristalizaram-se: o teatro pobre e a representação como um ato de transgressão. [...]
Existe algo de incomparavelmente íntimo e produtivo no trabalho com um ator que confia em mim. Ele deve ser atencioso [atento?], seguro e livre, pois nosso trabalho consiste em explorar ao máximo suas possibilidades. Seu desenvolvimento é atingido pela observação, pela perplexidade e pelo desejo de ajudar; o meu desenvolvimento se reflete nele, ou, melhor, está nele - e nosso desenvolvimento comum transforma-se em revelação. Não se trata de instruir um aluno, mas de se abrir completamente para outra pessoa, na qual é possível o fenómeno de "nascimento duplo e partilhado". O ator renasce - não somente como ator mas como homem - e, com ele, renasço eu. É uma maneira estranha de se dizer, mas o que se verifica, realmente, é a total aceitação de um ser humano por outro. [...]

Não me entendam mal. Falo de "santidade" como um descrente. Quero dizer: uma "santidade secular". Se o ator, estabelecendo para si próprio um desafio, desafia publicamente os outros e, através da profanação e do sacrilégio ultrajante, se revela, tirando sua máscara do cotidiano, torna possível ao espectador empreender um processo idêntico de autopenetração. [...] A técnica do "ator santo" é uma técnica indutiva (isto é, uma técnica de eliminação), enquanto a do "ator cortesão" é uma técnica dedutiva (isto é, um acúmulo de habilidades). [...]
O fato importante é o uso do papel como um trampolim, um instrumento pelo qual se estuda o que está oculto por nossa máscara cotidiana - a parte mais íntima da nossa personalidade - a fim de sacrificá-la, de expô-la.
É um excesso não só para o ator, mas também para a plateia. O espectador compreende, consciente ou inconscientemente, que se trata de um convite para que ele faça o mesmo, e isto termina por despertar oposição ou indignação, porque nossos esforços diários têm a finalidade de esconder a verdade sobre nós, não apenas do mundo, mas também de nós mesmos. [...] Se eu tivesse de expressar tudo isto numa só frase, diria que se trata de um problema de dar-se. Devemos nos dar totalmente, em nossa mais profunda intimidade, com confiança, como nos damos no amor. [...]»


Fonte: Grotowski, Jerzy. (1971) Grotowski: em busca de um Teatro Pobre. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira.