Na corte de Luis XIV (1638-1715)

O facto de grandes nomes do teatro francês terem vivido durante a corte de Luís XIV, e terem ajudado a glorificar o monarca (Corneille 1606-1684; Molière 1622-1673; Boileau 1636-1711; Racine 1639-1699), leva-me à curiosidade de olhar a corte francesa, particularmente na sua mudança para Versalhes (que ocorreu, oficialmente, em 1682). Foi Stendhal quem disse que a corte de Luís XIV nunca foi senão uma mesa de jogo!


«[...] Hoje, o nome "Versalhes" evoca não apenas um edifício mas um mundo social, o da corte e, especialmente, a ritualização da vida quotidiana do rei. As acções de levantar-se pela manhã e deitar-se à noite foram transformadas nas cerimónias de lever e de coucher - com a primeira dividida em duas etapas, petit lever, menos formal e grand lever, mais formal. As refeições reais foram também ritualizadas. Luís podia comer mais formalmente (o grand couvert) ou menos formalmente (o petit couvert) mas, até mesmo as ocasiões menos formais, très petit couvert, incluíam três pratos e muitas iguarias. Essas refeições eram tomadas diante de uma audiência. Era uma honra ter permissão para assistir ao rei a comer, uma honra maior poder falar ao rei durante a refeição, uma honra suprema ser convidado a servir-lhe a comida ou comer com ele. Todos os presentes usavam chapéu à excepção do rei, mas tiravam-no para falar ao rei ou se este lhes dirigisse a palavra, a menos que estivessem à mesa. [...]

A vida quotidiana do rei foi composta de acções que não eram tão-somente repetitivas, mas carregadas de significado simbólico porque eram desempenhadas em público por um actor, cuja pessoa era sagrada. Luís esteve sobre o palco quase toda a sua vida desperta. Os objectos materiais intimamente ligados ao rei tornaram-se, por sua vez, sagrados, porque o representavam. Consequentemente, era uma ofensa voltar as costas ao retrato do rei, entrar no seu dormitório vazio sem uma genuflexão, ou usar chapéu na sala onde a mesa estivesse posta para o jantar do rei. [...]

Após a sua instalação em Versalhes em 1682, o rei abria os seus apartamentos ao público (isto é, à classe alta), três vezes por semana para "divertimentos" tais como jogos de cartas e bilhares, nos quais "o Rei, a Rainha e toda a Família Real descem das suas alturas para jogar com os membros da assembleia". [...]

No decurso do século XVII, uma revolução intelectual teve lugar entre determinadas elites, em algumas partes da Europa Ocidental (França, Inglaterra, República Holandesa e Itália do norte, pelo menos), que questionou as presunções desta mentalidade mística. [...] A nova mentalidade foi aquela na qual o mundo era visto como uma máquina e não como um organismo ou "animal". [...] Veio o incremento da fé na razão e o aumento do que é conveniente chamar "relativismo cultural"; por outras palavras, a ideia de que planos sociais e culturais especiais não são determinados por Deus, ou necessários, mas contingentes. Variam de um lugar para outro e podem ser alterados de vez em quando. [...] Em suma, os reis perdiam a sua roupagem simbólica. Estavam a tornar-se desmistificados. [...]»


Fonte: Burke, Peter. (2007) A construção de Luís XIV. Casal de Cambra: Caleidoscópio.