Artaud, Teatro da Crueldade

No livro de 1938, Antonin Artaud (1896-1948) explica em que consiste o novo teatro que preconiza: um teatro já não centrado na palavra, que não exclui, mas na sensação, procurando esbater a distância entre actores e público (teatro e vida) ao propor uma encenação com carácter ritualístico.  As suas ideias ganharam força, particularmente a partir da década de 60 do séc. XX, pelo trabalho de grupos como o Living Theatre (EUA) ou o Teatro Oficina (Brasil).
 
 
«[...] Antes de mais nada, temos de reconhecer que o teatro, tal como a peste é um delírio e é também comunicativo. [...] Tal como a peste, o teatro refunde todas as ligações entre o que é e o que não é, entre a virtualidade do possível e o que já existe na natureza materializada. [...] No teatro autêntico, uma peça perturba o repouso dos sentidos, liberta o inconsciente recalcado, estimula uma espécie de revolta virtual(que, aliás, só resultará plenamente se permanecer virtual), e impõe à colectividade reunida uma atitude simultaneamente difícil e heroica. [...]
Se o teatro essencial se compara à peste não é por ser contagioso mas por, tal como a peste, ser a revelação, a apresentação, a exteriorização dum profundo íntimo de crueldade latente, por meio da qual todas as potencialidades perversas do espírito se fixam, quer sobre um indivíduo, quer sobre um povo. [...] O teatro, como a peste, é uma crise que se resolve ou pela morte ou pela cura. [...] E, para concluir, constatamos que, do ponto de vista humano, a acção do teatro, tal como a da peste, é benéfica, pois, ao compelir os homens a verem-se tais como são, faz que a máscara tombe, põe a nu a mentira, o relaxe, a baixeza, a hipocrisia deste nosso mundo; vence a inércia asfixiante da matéria que se apodera até do mais claro testemunho dos sentidos; e, ao revelar às colectividades humanas o seu poder sombrio, a sua força oculta, incita-as a tomarem, em face do destino, uma atitude superior e heroica, que nunca teriam assumido sem o teatro. [...]
 
Por que razão é que no teatro, pelo menos no teatro como o conhecemos, na Europa, ou melhor, no Ocidente, tudo o que é especificamente teatral, ou seja, tudo o que não pode ser expresso pela fala, pelas palavras [...] é relegado para segundo plano? [...] Afirmo que o palco é um lugar físico concreto que deve ser preenchido e a que se tem de dar uma linguagem própria concreta.
Afirmo que esta linguagem concreta, destinada aos sentidos e independente do discurso, tem de primeiro satisfazer os sentidos. [...] Esta linguagem criada para os sentidos deve, desde início, cuidar de os satisfazer. [...] Esta poesia, intensamente difícil e complexa, surge sob muitos aspectos, e em especial, os de todos os meios de expressão viáveis no palco, como a música, a dança, a arte plástica, a pantomima, a mímica, a gesticulação, a entoação, a arquitectura, a iluminação, o cenário. [...]
 
Tudo, nesta maneira prática e activa de encarar a expressão no palco, nos leva a afastar-nos da concepção actual humana e psicológica do teatro, em favor duma preponderância religiosa e mística de que o nosso teatro perdeu por completo o sentido.»
 
 
Fonte: Artaud, Antonin. (1989) O teatro e o seu duplo. Lisboa: Fenda.