Pedro Barbosa, Teatro e Quotidiano (teatro-de-rua)

Eis um excerto do livro "Teoria do Teatro Moderno - A hora zero" de Pedro Barbosa (1982). Além de outras reflexões sobre Dramaticidade e Teatralidade, sobre a falência do Realismo no Teatro, sobre as relações entre Teatro e Televisão e Teatro e Rádio, as citações transcritas abordam as particularidades do Teatro de Rua, especificamente.
 
 
«[...] É preciso distinguir teatro-ao-ar-livre de teatro-de-rua: o primeiro inclui o segundo, mas o segundo não corresponde ao primeiro.
A rua, ao contrário de um estádio, de um parque, de uma praça, não é um lugar onde se estaciona: é o lugar onde se circula, por onde o quotidiano escorre sem paragem. E é aí que o teatro-de-rua vai buscar a sua especificidade. A eleição da rua como lugar cénico implica a fusão da arte com a vida, a infiltração do teatro no quotidiano e, ainda, a mobilidade, o movimento constante ou fugaz, a necessidade de surpreender um público anónimo, atarefado e movediço. [...]
 
Uma vez eliminados os assentos fixos e a divisão rígida do espaço, novas relações entre o público e o espectáculo começam a desenhar-se. Antes de mais nada o teatro vai surpreender um público novo, com grandes probabilidades de atingir aquele que nunca vai ao teatro. [...]
 
Peter Schumann, fundador do Bread and Puppet Theatre, retira da prática alguns ensinamentos: "Na rua, as pessoas não são sensíveis a um teatro realista; é preciso criar metáforas, fantasia, espectáculos bruscos, violentos, sem psicologia; condensar toda uma história em alguns gestos, em algumas palavras; ou então organizar longas paradas, desfiles, cortejos." [...]
 
E aqui chegamos ao momento de compreender por que motivo o teatro-de-rua se associa quase sempre ao combate político, por que motivo a ruptura de cena se liga também a uma ruptura política. É que a rua não satisfaz apenas uma vanguarda estética que recusou a cena tradicional; ela satisfaz também uma vanguarda política que recusa os circuitos burocráticos e comerciais da cultura. Na sociedade de consumo, a rua significa a libertação do teatro enquanto mercadoria. O teatro de rua trabalha em directo, do produtor ao consumidor, dispensando intermediários. Assim se compreende o privilégio concedido à rua pelo teatro militante: ela representa uma tentativa de fuga integral em relação ao sistema e ao aparelho cultural. Toda a crítica da ideologia dominante, se não puser em causa a própria instituição que a suporta, traduz-se numa vitória para a instituição, e portanto num reforço da ideologia.»
 
 
Fonte: Barbosa, Pedro. (2003) Teoria do teatro moderno - A hora zero. Porto: Edições Afrontamento.