Platão, Sobre a mimese na polis

Escrito no século IV a.C., a República de Platão opera uma clivagem, que permanecerá até aos dias de hoje, entre o discurso dos poetas e o discurso dos filósofos, dando conta da influência perniciosa da mimese sobre todos quantos não estivessem cientes de se tratar de uma cópia de cópia, porque imitação da aparência, deixando o imitador 'três pontos afastado da realidade'. Começa então a indagação sobre a utilidade do Teatro para a cidade e a acusação de fomentar a irracionalidade e a cobardia em vez da moderação a que conduziria a razão.
«[...] A nossa doutrina sobre a poesia [...] a de não aceitar a parte da poesia de carácter mimético. [...] Aqui entre nós (porquanto não ireis contá-lo aos poetas trágicos e a todos os outros que praticam a mimese), todas as obras dessa espécie se me afiguram ser a destruição da inteligência dos ouvintes, de quantos não tiverem como antídoto o conhecimento da sua verdadeira natureza. [...] Estamos, ao que parece, suficientemente de acordo: que o imitador não tem conhecimentos que valham nada sobre aquilo que imita, mas que a imitação é uma brincadeira sem seriedade. [...] A arte de imitar executa as suas obras longe da verdade, e, além disso, convive com a parte de nós mesmos avessa ao bom-senso, sem ter em vista, nesta companhia e amizade, nada que seja são ou verdadeiro. [...]

A poesia mimética, dizíamos nós, imita homens entregues a acções forçadas ou voluntárias, e que, em consequência de as terem praticado, pensam ser felizes ou infelizes, afligindo-se ou regozijando-se em todas essas circunstâncias. [...]

E quanto ao amor, à ira e a todas as paixões penosas ou aprazíveis da alma, que afirmámos acompanharem todas as nossas acções, não produz em nós os mesmos efeitos a imitação poética? Porquanto os rega para os fortalecer, quando devia secá-los, e os erige nossos soberanos, quando deviam obedecer, a fim de nos tornarmos melhores e mais felizes, em vez de piores e mais desgraçados. [...]

Quanto à poesia, somente se devem receber na cidade hinos aos deuses e encómios aos varões honestos e nada mais. Se, porém, acolheres a Musa aprazível na lírica ou na epopeia, governarão a tua cidade o prazer e a dor, em lugar da lei e do princípio que a comunidade considere, em todas as circunstâncias, o melhor.»


Fonte: Platão. (1993) A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.