Alberto Pimenta, Sobre a normatividade poética

As reflexões de Alberto Pimenta no livro "O Silêncio dos poetas" ajudam-nos a compreender a obra de arte literária. Se o teatro não é literatura, esteve durante longo período de tempo votado ao textocentrismo ou logocentrismo, pelo que as considerações de Pimenta sobre o que a arte é ou procura ser, sobre a função da arte literária, comunicação vs expressão, constituem uma valiosa contribuição para reflectirmos sobre as pretensões do teatro que cada um de nós quer fazer.
 
 
«[...] O áureo caminho da ideal coincidência e integração do subjectivismo expressivo e da função comunicativa objectiva era justamente o caminho trilhado pelo sistema normativo poetológico, ou - mais adequado será dizer: esse sistema visava justamente essa coincidência e integração. Em toda a Poética de Aristóteles é evidente e explícito o esforço de conciliar a liberdade subjectiva de expressão com a necessidade social de entendimento. [...]
 
Até ao século XVIII [...] as teorias poéticas que se foram sucedendo, e mutuamente copiando, apenas superficialmente variam esse compromisso inicial que vincula a arte literária a uma missão ético-social e faz com que o gosto ocidental (pós-socrático e, naturalmente, cristão) se haja chegado a identificar belo e bem como categorias homólogas, indissoluvelmente ligadas. [...]
De acordo com a norma poetológica fundamental, não é o estilo (ou seja, a técnica sistemática de transformação do médium) que faz o tema elevado ou trivial, mas é a elevação ou a trivialidade a priori do tema que determina o estilo. [...]
 
Aristóteles fala de poesia sublime e vulgar, e esta oposição, explicitada sobretudo na oposição tragédia/comédia, reflecte desde início a organização social nas suas duas classes: a classe dos senhores, voltada para cima, onde normalmente é a residência dos deuses, e a classe dos servos, voltada para baixo, onde normalmente é o trabalho e a produção. Enquanto a tragédia representa a reverência perante a ordem que vem de cima, a comédia ocupa-se da 'baixa humanidade'. [...] Não é só o desfecho que distingue radicalmente estes dois géneros e está a priori fixado, mas também a construção e a intenção. Em termos claros e evidentes, poderiam reduzir-se os dois géneros às seguintes combinações: se há senhores logrados por deuses ou por outros senhores, é trágico; se há servos logrados por servos ou por senhores, é cómico; as restantes combinações estão fora do âmbito do sistema poetológico. [...]
 
Pelo século XVIII, este estado de 'graça' começou a desagregar-se, dentro do processo geral de desagregação de toda a estrutura da sociedade antiga, que se baseava numa 'razão' transcendente e não racional e, menos ainda, existencial.  Esta libertação da arte literária da transcendência absoluta de estilos e géneros faz portanto parte de uma libertação da consciência operada ao longo do processo da revolução burguesa.»
 
 
Fonte: Pimenta, Alberto. (2003) O silêncio dos poetas. Lisboa: Edições Cotovia.