Diderot, Paradoxo sobre o actor

Redigido entre 1773 e 1777, só publicado em 1830, este texto de Denis Diderot constitui uma rara abordagem, à época, sobre o trabalho do actor. Desde então, a obra tem despoletado forte contestação por parte de vários comediantes, que consideram que Diderot olhou a sua arte como espectador e não como actor. As maiores críticas dirigiram-se, particularmente, à sua defesa da «falta de sensibilidade» do grande actor. Mas este texto não se cinge a esta discussão, propondo a reformulação do modo de fazer teatro, apelando a maior 'verdade' em cena, avançando com a noção de quarta parede, tornando-se, portanto, um precursor da estética realista.
 
 
«Cabe à natureza dar as qualidades da pessoa, a figura, a voz, o critério, a finura. Cabe ao estudo dos grandes modelos, ao conhecimento do coração humano, à vivência, ao trabalho assíduo, à experiência e à prática do teatro aperfeiçoarem a dádiva da natureza. [...] E como seria possível a natureza formar sem a arte um grande actor, se nada se passa no palco exactamente como ao natural, e se todos os poemas dramáticos são escritos segundo um determinado sistema de princípios? [...]
Eu quero-o [ao grande actor] cheio de juízo crítico; nesse homem é-me necessário um frio e tranquilo espectador; exijo, por conseguinte, penetração e nenhuma sensibilidade [no sentido de emotividade], a arte de tudo imitar ou, o que vai dar ao mesmo, uma idêntica aptidão para todas as espécies de caracteres e papéis. [...]
O que confirma a minha opinião é a desigualdade dos actores que interpretam com a alma. Da parte deles não espere nenhuma unidade; o seu jogo é alternadamente forte e fraco, quente e frio, chato e sublime. [...] Ao passo que o actor que interpretar por reflexão, por estudo da natureza humana, por imitação constante segundo um qualquer modelo ideal, por imaginação, por memória, será uno, o mesmo em todas as representações, sempre e de igual modo perfeito; tudo foi medido, combinado, aprendido, ordenado na sua cabeça; na sua declamação não há monotonia nem dissonância. [...] Se houver alguma diferença entre representações, será geralmente com vantagem para a última. [...]
Poderiam estas verdades ser demonstradas, que os grandes actores não concordariam com elas; são o seu segredo. [...]
Nós é que levamos connosco todas estas sensações. O actor está cansado e nós tristes; é que ele agitou-se sem sentir nada, e nós sentimos sem nos agitar. De outro modo, a condição de actor seria a mais desgraçada de todas; mas ele não é a personagem, representa-a; e representa-a tão bem que o confundimos com ela: a ilusão só nos toca a nós; ele sabe muito bem que é outra pessoa.»
 
 
Fonte: Diderot. (1993) Paradoxo sobre o actor. Lisboa: Hiena Editora.