Steiner, A psicanálise de Freud

"Nostalgia do absoluto", livro composto por várias conferências proferidas por George Steiner, aborda a substituição dos sistemas religiosos por outros que ambicionam constituir uma explicação abrangente, que preencha o vazio deixado pela nostalgia do absoluto, na sociedade ocidental. Steiner debruça-se sobre o marxismo, a psicanálise e a antropologia de Lévi-Strauss.
Aqui deixo um excerto que reporta à Psicanálise, numa aproximação à descrença do filósofo inglês Karl Popper na cientificidade da teoria freudiana, que afinal recorre ao mito e à literatura para 'provar' as suas teses.


«[...] Desejo sugerir, com hesitação, mas, espero, alguma seriedade, que a famosa divisão da consciência psicológica humana - id, ego, superego - deve muito à divisão em cave, quartos e sótão da casa da classe média vienense na viragem do século XIX para o XX. As teorias de Freud não são científicas no sentido de serem universais, independentes do seu meio social e étnico, como o são as teorias da física ou da biologia molecular. São inspiradas leituras e projecções das condições económicas, familiares e sexuais da existência burguesa na Europa Central e Ocidental entre, digamos, os anos 80 do século XIX e os anos 20 do século XX. [...]

Com isto não procuro diminuir o poder seminal das observações de Freud. É perfeitamente consensual que essas observações tiveram repercussões formidáveis na cultura do Ocidente. [... Mas] Quando seria de esperar um conjunto de provas de natureza clínica e estatística, a enumeração de um grande número de casos, Freud dá-nos uma "prova" - ponho a palavra entre aspas - que vai buscar ao mito e a literatura. [...] Aquilo que, para Freud, demonstrava a realidade da universalidade das suas metáforas terapêuticas, como o complexo de Édipo, era igualmente um conjunto de elaborações metafóricas e dramas arquetípicos, corporizados e transmitidos sob a forma de mitos. [...]

Na psicanálise, tal como no marxismo, existe o mistério do pecado original. Mas, ao contrário do relato de Marx, o de Freud é específico. Conta-nos do parricídio cometido na horda primitiva, da castração e/ou assassínio da figura paterna pelos seus filhos. A humanidade, diz-nos Freud, está marcada por este crime primitivo. Daí descende a longa história do ajustamento entre pulsão instintiva e repressão social, sexualidade indiscriminada e ordem familiar, ajustamento esse que está bem longe de ser perfeito. [...] Ao reflectir sobre a infelicidade, aparentemente inerente, da espécie humana, enredada numa dialéctica de impulsos e constrangimentos de natureza biológica e social, Freud embrenha-se cada vez mais no mitológico. [...]
Segundo Freud, duas divindades, dois deuses, dois poderes irresistíveis governam e dividem o nosso ser. O amor e a morte, Eros e Tanatos. O seu conflito determina os ritmos da existência, da procriação, da evolução somática e psíquica. Mas no fim - contrariamente a todas as previsões intuitivas e instintivas, a todas as nossas esperanças - não é Eros, o amor, mas sim Tanatos quem prevalece, quem se mostra mais próximo das raízes do humano. O que a nossa espécie procura, em última instância, não é a sua sobrevivência e perpetuação, mas sim o repouso, a perfeita inércia. No programa visionário de Freud, a explosão da vida orgânica, que conduziu à evolução humana, foi uma espécie de anomalia trágica, quase uma exuberância fatal. Acarretou sofrimentos incalculáveis e catástrofes ecológicas. Mas este desvio de vida e consciência acabará mais cedo ou mais tarde. Um processo de entropia interna está em movimento. Uma grande quietude voltará à criação à medida que a vida regresse à condição natural do inorgânico. A consumação da libido encontra-se na morte.
 
[...] A psicanálise freudiana estava determinada a retirar da psique humana as ilusões infantis - é esse o termo usado por Freud - da religião. Freud queria libertar o homem da infantilidade das crenças metafísicas. Evidentemente, a psicologia de Jung não só recorre à experiência religiosa para muitas das suas categorias principais, como vê na religião uma componente necessária e evolutiva da história e saúde da alma humana. Consequentemente, a disputa freudiana com o modelo junguiano é em parte, creio, uma disputa entre o agnosticismo e a crença no transcendente e, a um nível muito mais profundo, um duelo entre uma nova mitologia, uma crença substituta, e um sistema que quer trazer de volta os seus antigos rivais, os deuses. [...] Freud procurava banir as sombras arcaicas do irracionalismo, da fé no sobrenatural. A sua promessa, como a de Marx, era uma promessa de luz. Não se cumpriu. Antes pelo contrário.»


Fonte: Steiner, George. (2003) Nostalgia do absoluto. Lisboa: Relógio d'Água Editores.