Dürrenmatt, Tragédia vs. Comédia

Friedrich Dürrenmat (1921-1990), autor de peças de teatro, romances policiais e poesia, que descobri através da célebre peça "A visita da velha senhora" de 1956, reflecte neste ensaio de 1955, intitulado Problemas do teatro, sobre as unidades de lugar, tempo e acção, os espaços cénicos, os recursos do dramático e do épico, etc., oportunidade para ouvirmos um dramaturgo falar sobre a sua própria arte. 
Interessou-me aqui incluir as suas reflexões sobre a comédia e a tragédia no decurso do pós-Segunda Grande Guerra.

«[...] Na tragédia antiga e no teatro shakespeareano, o herói pertence a mais alta classe da sociedade, isto é, à nobreza. [...] Entretanto, quando Lessing e Schiller introduzem a tragédia burguesa, o público passa a ver a si mesmo na pele dos heróis que sofrem no palco. E foi-se ainda mais adiante. A personagem de Woyzeck, de Georg Büchner, é um proletário primitivo que, do ponto de vista social, representa menos que o frequentador mediano de teatro. Com isso, justamente nesta forma extrema de existência, nesta forma derradeira e misérrima, o público passa a ver o ser humano, isto é, a si mesmo.
Neste ponto, deve-se mencionar, finalmente, Luigi Pirandello, o primeiro dramaturgo a apresentar o herói no palco, tanto quanto eu saiba, de maneira desmaterializada, transparente, analogamente ao que Thornton Wilder fez com o espaço dramático, de forma que o público, sentado diante de tal esquema, assiste à sua própria fragmentação, à análise psicanalítica de si mesmo e, desse modo, o palco se torna um espaço ou um mundo interior.
Ora, mesmo antigamente, o teatro não colocava em cena apenas reis e proprietários de terra. Desde sempre, a comédia reconheceu o mendigo, o agricultor e o cidadão comum como heróis, mas apenas a comédia. Nas peças de Shakespeare, jamais entra em cena um rei engraçado; a sua época permitia mostrar um senhor talvez como um monstro sanguinário, mas nunca como um tolo. Em suas peças, cômicos são sempre os palacianos, os artesãos, os trabalhadores.
Assim, pode-se observar, no desenvolvimento do herói trágico, uma guinada na direção da comédia. O mesmo se dá com o tolo, que cada vez mais se transforma numa figura trágica. Este estado de coisas, porém, não é destituído de significado. O herói de uma peça de teatro não apenas impulsiona a ação, ou é vítima de um determinado destino, mas também representa um mundo. Por isso, devemo-  -nos perguntar acerca do modo como o nosso mundo, pleno de dúvidas, deve ser representado no palco, com que heróis; devemo-nos perguntar acerca do modo como os espelhos captam esse mundo e como eles devem ser polidos. [...]
O mundo de hoje pode ser mais bem representado por um pequeno traficante, por um escriturário ou por um policial, do que por um Conselho Federal ou um chanceler. A arte ainda tem penetração nas vítimas, tem penetração nas pessoas em geral, mas os poderosos não são mais por ela alcançados. [...]
Porém, a tarefa da arte, se é que ela pode ter uma, e, por conseguinte, a tarefa do teatro hodierno, é a de criar forma ou algo concreto. E isto é conseguido, sobretudo, pela comédia. A tragédia, por ser o gênero artístico mais rígido, pressupõe um mundo enformado. A comédia, se não for comédia social, nos moldes de Molière, pressupõe um mundo desenformado, em mudança, em revolução, um mundo em arrumação, como o nosso. A tragédia vence a distância. Ela faz os mitos dos tempos remotos trazerem os atenienses ao presente. A comédia cria distância [...]. Seus temas [de Aristófanes] não se circunscrevem a mitos, mas a ações inventadas, que não transcorrem no passado, mas no presente. Elas são lançadas ao mundo feito projéteis que, ao se transformarem em megafone, transformam o presente em algo cômico e, dessa forma, também visível. Agora isto não quer dizer que um drama, hoje, possa ser apenas cômico. [...] 
A tragédia pressupõe culpa, necessidade, moderação, controle, responsabilidade. Na confusão reinante em nosso século, nesta desordem da raça branca, não existem mais culpados e também não existem mais responsáveis, [...] Tornamo-nos coletivamente culpados, coletivamente encarcerados nos pecados de nossos pais e de nossos antepassados. [...] A nós convém apenas a comédia. Nosso mundo caminhou simultaneamente para o grotesco e para a bomba atômica, do mesmo modo que os quadros apocalípticos de Jerônimo Bosch também são grotescos. [...]
Porém, o trágico ainda continua sendo possível, embora não mais a tragédia pura. Podemos obter, gerar, o trágico a partir da comédia, como um momento assustador, ou como um abismo que se abre. É assim que muitas tragédias de Shakespeare são comédias, das quais o trágico emerge. 
Quase se poderia concluir que a comédia é a expressão do desespero, mas tal conclusão não é definitiva. [...]
A liberdade do homem manifesta-se no riso, enquanto no choro se manifesta a sua necessidade. Hoje é necessário demonstrar a liberdade. Os tiranos deste planeta não se comovem diante das produções dos poetas, bocejam diante de seus poemas queixosos, consideram seus cantos heróicos contos de fada tolos e adormecem diante de poemas religiosos. Apenas uma coisa os assusta: o escárnio. [...]
O cômico é considerado coisa menor, dúbia, indecente, e só é validado no momento em que, com ele, alguém se sente tão canibalisticamente bem quanto uma vara de porcos. Mas, a partir do momento em que o cômico passa a ser reconhecido como perigoso, revelador, desafiador, moralizador, ele é deixado de lado, como se fosse um ferro em brasa, visto que a arte pode ser tudo o que quiser, desde que permaneça agradável. [...]»


Fonte: Dürrenmatt, Friedrich. (2007) O sósia/Problemas do teatro. São Paulo: EDUSP.