Ionesco, A irracionalidade e o Teatro do Absurdo

Eugène Ionesco (1912-1994) [1909 é apontado como ano de nascimento nalgumas fontes] é um autor romeno, tendo adquirido a nacionalidade francesa, conotado com o Teatro do Absurdo, a que prefere chamar Teatro Novo ou de Vanguarda.
Em A Busca Intermitente, livro autobiográfico, diarístico, que redige entre 1986 e 1987, o autor reflecte sobre a sua vida pessoal, a sua obra e sobre o tempo percorrido com a sinceridade que, penso, só a velhice permite.
Eis alguns excertos que revelam a sua angústia perante o que considerava ser a falta de reconhecimento pelo seu papel na criação de um Teatro dito «do absurdo» [termo cunhado por Esslin para agrupar vários autores que após a II Grande Guerra experimentavam uma dramaturgia que explorava a falta de sentido da condição humana].
 
 
«[...] Não posso impedir que as minhas obsessões, a minha vaidade, me atormentem. É realmente muito irritante ouvir dizer ou ler num jornal que Beckett é o promotor do teatro dito «do absurdo». Mas fui eu que, na encenação de Nicolas Bataile, fiz representar, em 1950, A Cantora Careca, nos Noctambules e, em 1951, A Lição, no Théâtre de Poche. Em Abril de 1952, Les Chaises, no Théâtre du Nouveau-Lancry, com encenação de Sylvain Dhomme. Em 1953, Victimes du devoir, com Jacques Mauclair; em 1954, Amédée ou Comment s'en débarrasser, com encenação de Jean-Marie Serreau. [...]
Quanto a Beckett, fez a sua aparição no teatro em fins de 1953, com À espera de Godot. O teatro dito «do absurdo» (Esslin) ou da «dérision» (definição de E. Jacquart) e que eu prefiro chamar «o teatro novo» ou «de vanguarda», uma vanguarda que se mantém viva, já que, dos anos 50 para cá, esse teatro, tão característico, não houve ainda nada que ocupasse o lugar dele: o teatro novo prosperava já nas tábuas graças a mim, a Adamov e também a gente como Jean Tardieu (insuficientemente honrado) e a gente mais nova, Weingarten, Dubillard e Raymond Queneau. [...] Diz-se que Beckett tinha escrito já o Godot em 1947. Mas era extremamente discreto. De resto, os primeiros esboços da Cantora Careca, que então se chamava O inglês sem mestre, tinha-os escrito em 1943, na Roménia, e facilmente o posso comprovar.
Beckett, aliás, não é o que se possa chamar um «membro» da família «do absurdo».: o humor dele provém, pertence a uma outra tradição, a um folclore, o irlandês. [...]
Beckett é demasiado lúcido, demasiado frio, demasiado calculado, sabe muito (demasiado) conscientemente o que deve e não deve dizer. Não deu qualquer espaço na sua obra, nele próprio, nem à surpresa, nem à contemplação, nem à lucidez segunda da irracionalidade, à (sua) profundidade mais negra do que o seu humor negro. Faz «estilo» com a miséria do mundo, e a sua, e a nossa.
É por isso que ele é limitado. Talvez mesmo medíocre - apesar (ou por causa) da sua ciência.
Embrenha-se na noite com muita claridade, demasiada. É por isso que agrada. Nem um erro, nem um descuido, nada há ali ao acaso. É por isso que vai deixar de agradar. [...]
 
Na supra-racionalidade da ciência, à supra-racionalidade da ciência opõe-se aquilo a que se chama a irracionalidade do mundo, dos homens, no nosso comportamento. A irracionalidade é muito mais poderosa do que a racionalidade: o nosso comportamento, os nossos erros, assim no-lo provam. [...]
É evidente que caminhamos para a catástrofe, é evidente. À Catástrofe, à derrocada para a catástrofe continua a chamar-se Progresso ( o «progresso» na tal linguagem estereotipada). [...]
A irracionalidade é mais poderosa do que a racionalidade. No irracional repousa a verdade. É lá que devemos ir procurá-la. Mas só podemos, paradoxo, procura-la com a nossa razão tola, a razão que não vê, e se é no irracional que está a verdade, e já que ela é eros e thanatos, o bem (o positivo) e o mal (negativo), deixemo-nos impelir pelo bem que não compreendemos, mas deixemo-nos levar por Ele, rezemos-Lhe para isso, rezemos. [...]»
 
 
Fonte: Ionesco, Eugene. (1990) A busca intermitente. Lisboa: Difel.