António Freire, Do Destino na Tragédia Grega

Porque por vezes fazemos uma leitura simplista da importância do Destino no desenvolvimento das tramas das Tragédias Gregas, o livro de António Freire "O Teatro Grego" pode ajudar-nos a compreender a forma como o fatalismo era entendido pelos gregos, havendo lugar para uma leitura de cariz popular e outra de âmbito filosófico. Apoiando-se na crítica de vários helenistas, António Freire considera que a fatalidade não é um elemento essencial à Tragédia. Dá como exemplo o "Rei Édipo" de Sófocles, afirmando que Édipo age livremente, apesar do oráculo prever a desgraça que se abate sobre ele para expiar a culpa do pai, e que, aos olhos dos espectadores da Grécia Antiga, este mereceria o castigo sofrido não por ser incestuoso e parricida, porque involuntário, mas por não dominar as suas paixões, mostrando-se irado, arrogante e injusto.
A leitura de Deniz-Jacinto vai no mesmo sentido, por isso também aqui coloquei um excerto do seu livro "Teatro III".
 
 
«[...] Há uma objecção que pode oferecer alguma dificuldade a leitores não familiarizados com a subtil dialéctica filosófica: é a predição oracular de desgraças fatais, como no caso de Laio e de Édipo.
O facto de sucederem acontecimentos vaticinados, quer pelo oráculo de Apolo, quer pelo adivinho Tirésias (na Antígona de Sófocles), não permite inferir daí fatalismo algum. A liberdade das personagens mantém-se intacta, e isso é o que importa para excluir o fatalismo. A predição é feita em virtude da previsão infalível da actuação livre das criaturas. [...] Não se dão os factos porque Deus os prevê ou prediz, mas Deus prevê-os ou predi-los porque eles realmente se dão e lhe estão presentes. [...]»
 
Fonte: Freire, António. (1997) O Teatro Grego. Braga: Edições APPACDM.
 
 
«[...] A moira, o destino, não é então aquela potência arbitrária, caprichosa e cega que, durante muito tempo, foi apresentada como móbil da tragédia grega. Com este sentido parece que não podemos incluir o destino na motivação trágica. Mas podemos, por certo, aceitar relações de causa-efeito, um determinismo que a partir de um erro cometido pelo herói, se cumpre como uma reacção em cadeia através das vicissitudes do drama.
O herói trágico pode trazer ainda em si mesmo, como herança, uma tara que o expõe à provação. Ele não é pessoalmente culpado, no sentido que hoje podemos atribuir à palavra, mas deve limpar-se da chaga original mediante a aceitação das consequências dela, e depurar-se da mácula por intermédio da dor que, simultaneamente, será a grande mestra da vida. [...]»
 
Fonte: Deniz-Jacinto. (1992) Teatro - III (A Tragédia). Porto: Lello & Irmão Editores.

Na corte de Luis XIV (1638-1715)

O facto de grandes nomes do teatro francês terem vivido durante a corte de Luís XIV, e terem ajudado a glorificar o monarca (Corneille 1606-1684; Molière 1622-1673; Boileau 1636-1711; Racine 1639-1699), leva-me à curiosidade de olhar a corte francesa, particularmente na sua mudança para Versalhes (que ocorreu, oficialmente, em 1682). Foi Stendhal quem disse que a corte de Luís XIV nunca foi senão uma mesa de jogo!


«[...] Hoje, o nome "Versalhes" evoca não apenas um edifício mas um mundo social, o da corte e, especialmente, a ritualização da vida quotidiana do rei. As acções de levantar-se pela manhã e deitar-se à noite foram transformadas nas cerimónias de lever e de coucher - com a primeira dividida em duas etapas, petit lever, menos formal e grand lever, mais formal. As refeições reais foram também ritualizadas. Luís podia comer mais formalmente (o grand couvert) ou menos formalmente (o petit couvert) mas, até mesmo as ocasiões menos formais, très petit couvert, incluíam três pratos e muitas iguarias. Essas refeições eram tomadas diante de uma audiência. Era uma honra ter permissão para assistir ao rei a comer, uma honra maior poder falar ao rei durante a refeição, uma honra suprema ser convidado a servir-lhe a comida ou comer com ele. Todos os presentes usavam chapéu à excepção do rei, mas tiravam-no para falar ao rei ou se este lhes dirigisse a palavra, a menos que estivessem à mesa. [...]

A vida quotidiana do rei foi composta de acções que não eram tão-somente repetitivas, mas carregadas de significado simbólico porque eram desempenhadas em público por um actor, cuja pessoa era sagrada. Luís esteve sobre o palco quase toda a sua vida desperta. Os objectos materiais intimamente ligados ao rei tornaram-se, por sua vez, sagrados, porque o representavam. Consequentemente, era uma ofensa voltar as costas ao retrato do rei, entrar no seu dormitório vazio sem uma genuflexão, ou usar chapéu na sala onde a mesa estivesse posta para o jantar do rei. [...]

Após a sua instalação em Versalhes em 1682, o rei abria os seus apartamentos ao público (isto é, à classe alta), três vezes por semana para "divertimentos" tais como jogos de cartas e bilhares, nos quais "o Rei, a Rainha e toda a Família Real descem das suas alturas para jogar com os membros da assembleia". [...]

No decurso do século XVII, uma revolução intelectual teve lugar entre determinadas elites, em algumas partes da Europa Ocidental (França, Inglaterra, República Holandesa e Itália do norte, pelo menos), que questionou as presunções desta mentalidade mística. [...] A nova mentalidade foi aquela na qual o mundo era visto como uma máquina e não como um organismo ou "animal". [...] Veio o incremento da fé na razão e o aumento do que é conveniente chamar "relativismo cultural"; por outras palavras, a ideia de que planos sociais e culturais especiais não são determinados por Deus, ou necessários, mas contingentes. Variam de um lugar para outro e podem ser alterados de vez em quando. [...] Em suma, os reis perdiam a sua roupagem simbólica. Estavam a tornar-se desmistificados. [...]»


Fonte: Burke, Peter. (2007) A construção de Luís XIV. Casal de Cambra: Caleidoscópio.


Platão, Sobre a mimese na polis

Escrito no século IV a.C., a República de Platão opera uma clivagem, que permanecerá até aos dias de hoje, entre o discurso dos poetas e o discurso dos filósofos, dando conta da influência perniciosa da mimese sobre todos quantos não estivessem cientes de se tratar de uma cópia de cópia, porque imitação da aparência, deixando o imitador 'três pontos afastado da realidade'. Começa então a indagação sobre a utilidade do Teatro para a cidade e a acusação de fomentar a irracionalidade e a cobardia em vez da moderação a que conduziria a razão.
«[...] A nossa doutrina sobre a poesia [...] a de não aceitar a parte da poesia de carácter mimético. [...] Aqui entre nós (porquanto não ireis contá-lo aos poetas trágicos e a todos os outros que praticam a mimese), todas as obras dessa espécie se me afiguram ser a destruição da inteligência dos ouvintes, de quantos não tiverem como antídoto o conhecimento da sua verdadeira natureza. [...] Estamos, ao que parece, suficientemente de acordo: que o imitador não tem conhecimentos que valham nada sobre aquilo que imita, mas que a imitação é uma brincadeira sem seriedade. [...] A arte de imitar executa as suas obras longe da verdade, e, além disso, convive com a parte de nós mesmos avessa ao bom-senso, sem ter em vista, nesta companhia e amizade, nada que seja são ou verdadeiro. [...]

A poesia mimética, dizíamos nós, imita homens entregues a acções forçadas ou voluntárias, e que, em consequência de as terem praticado, pensam ser felizes ou infelizes, afligindo-se ou regozijando-se em todas essas circunstâncias. [...]

E quanto ao amor, à ira e a todas as paixões penosas ou aprazíveis da alma, que afirmámos acompanharem todas as nossas acções, não produz em nós os mesmos efeitos a imitação poética? Porquanto os rega para os fortalecer, quando devia secá-los, e os erige nossos soberanos, quando deviam obedecer, a fim de nos tornarmos melhores e mais felizes, em vez de piores e mais desgraçados. [...]

Quanto à poesia, somente se devem receber na cidade hinos aos deuses e encómios aos varões honestos e nada mais. Se, porém, acolheres a Musa aprazível na lírica ou na epopeia, governarão a tua cidade o prazer e a dor, em lugar da lei e do princípio que a comunidade considere, em todas as circunstâncias, o melhor.»


Fonte: Platão. (1993) A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Alberto Pimenta, Sobre a normatividade poética

As reflexões de Alberto Pimenta no livro "O Silêncio dos poetas" ajudam-nos a compreender a obra de arte literária. Se o teatro não é literatura, esteve durante longo período de tempo votado ao textocentrismo ou logocentrismo, pelo que as considerações de Pimenta sobre o que a arte é ou procura ser, sobre a função da arte literária, comunicação vs expressão, constituem uma valiosa contribuição para reflectirmos sobre as pretensões do teatro que cada um de nós quer fazer.
 
 
«[...] O áureo caminho da ideal coincidência e integração do subjectivismo expressivo e da função comunicativa objectiva era justamente o caminho trilhado pelo sistema normativo poetológico, ou - mais adequado será dizer: esse sistema visava justamente essa coincidência e integração. Em toda a Poética de Aristóteles é evidente e explícito o esforço de conciliar a liberdade subjectiva de expressão com a necessidade social de entendimento. [...]
 
Até ao século XVIII [...] as teorias poéticas que se foram sucedendo, e mutuamente copiando, apenas superficialmente variam esse compromisso inicial que vincula a arte literária a uma missão ético-social e faz com que o gosto ocidental (pós-socrático e, naturalmente, cristão) se haja chegado a identificar belo e bem como categorias homólogas, indissoluvelmente ligadas. [...]
De acordo com a norma poetológica fundamental, não é o estilo (ou seja, a técnica sistemática de transformação do médium) que faz o tema elevado ou trivial, mas é a elevação ou a trivialidade a priori do tema que determina o estilo. [...]
 
Aristóteles fala de poesia sublime e vulgar, e esta oposição, explicitada sobretudo na oposição tragédia/comédia, reflecte desde início a organização social nas suas duas classes: a classe dos senhores, voltada para cima, onde normalmente é a residência dos deuses, e a classe dos servos, voltada para baixo, onde normalmente é o trabalho e a produção. Enquanto a tragédia representa a reverência perante a ordem que vem de cima, a comédia ocupa-se da 'baixa humanidade'. [...] Não é só o desfecho que distingue radicalmente estes dois géneros e está a priori fixado, mas também a construção e a intenção. Em termos claros e evidentes, poderiam reduzir-se os dois géneros às seguintes combinações: se há senhores logrados por deuses ou por outros senhores, é trágico; se há servos logrados por servos ou por senhores, é cómico; as restantes combinações estão fora do âmbito do sistema poetológico. [...]
 
Pelo século XVIII, este estado de 'graça' começou a desagregar-se, dentro do processo geral de desagregação de toda a estrutura da sociedade antiga, que se baseava numa 'razão' transcendente e não racional e, menos ainda, existencial.  Esta libertação da arte literária da transcendência absoluta de estilos e géneros faz portanto parte de uma libertação da consciência operada ao longo do processo da revolução burguesa.»
 
 
Fonte: Pimenta, Alberto. (2003) O silêncio dos poetas. Lisboa: Edições Cotovia.

Artaud, Teatro da Crueldade

No livro de 1938, Antonin Artaud (1896-1948) explica em que consiste o novo teatro que preconiza: um teatro já não centrado na palavra, que não exclui, mas na sensação, procurando esbater a distância entre actores e público (teatro e vida) ao propor uma encenação com carácter ritualístico.  As suas ideias ganharam força, particularmente a partir da década de 60 do séc. XX, pelo trabalho de grupos como o Living Theatre (EUA) ou o Teatro Oficina (Brasil).
 
 
«[...] Antes de mais nada, temos de reconhecer que o teatro, tal como a peste é um delírio e é também comunicativo. [...] Tal como a peste, o teatro refunde todas as ligações entre o que é e o que não é, entre a virtualidade do possível e o que já existe na natureza materializada. [...] No teatro autêntico, uma peça perturba o repouso dos sentidos, liberta o inconsciente recalcado, estimula uma espécie de revolta virtual(que, aliás, só resultará plenamente se permanecer virtual), e impõe à colectividade reunida uma atitude simultaneamente difícil e heroica. [...]
Se o teatro essencial se compara à peste não é por ser contagioso mas por, tal como a peste, ser a revelação, a apresentação, a exteriorização dum profundo íntimo de crueldade latente, por meio da qual todas as potencialidades perversas do espírito se fixam, quer sobre um indivíduo, quer sobre um povo. [...] O teatro, como a peste, é uma crise que se resolve ou pela morte ou pela cura. [...] E, para concluir, constatamos que, do ponto de vista humano, a acção do teatro, tal como a da peste, é benéfica, pois, ao compelir os homens a verem-se tais como são, faz que a máscara tombe, põe a nu a mentira, o relaxe, a baixeza, a hipocrisia deste nosso mundo; vence a inércia asfixiante da matéria que se apodera até do mais claro testemunho dos sentidos; e, ao revelar às colectividades humanas o seu poder sombrio, a sua força oculta, incita-as a tomarem, em face do destino, uma atitude superior e heroica, que nunca teriam assumido sem o teatro. [...]
 
Por que razão é que no teatro, pelo menos no teatro como o conhecemos, na Europa, ou melhor, no Ocidente, tudo o que é especificamente teatral, ou seja, tudo o que não pode ser expresso pela fala, pelas palavras [...] é relegado para segundo plano? [...] Afirmo que o palco é um lugar físico concreto que deve ser preenchido e a que se tem de dar uma linguagem própria concreta.
Afirmo que esta linguagem concreta, destinada aos sentidos e independente do discurso, tem de primeiro satisfazer os sentidos. [...] Esta linguagem criada para os sentidos deve, desde início, cuidar de os satisfazer. [...] Esta poesia, intensamente difícil e complexa, surge sob muitos aspectos, e em especial, os de todos os meios de expressão viáveis no palco, como a música, a dança, a arte plástica, a pantomima, a mímica, a gesticulação, a entoação, a arquitectura, a iluminação, o cenário. [...]
 
Tudo, nesta maneira prática e activa de encarar a expressão no palco, nos leva a afastar-nos da concepção actual humana e psicológica do teatro, em favor duma preponderância religiosa e mística de que o nosso teatro perdeu por completo o sentido.»
 
 
Fonte: Artaud, Antonin. (1989) O teatro e o seu duplo. Lisboa: Fenda.

Pedro Barbosa, Teatro e Quotidiano (teatro-de-rua)

Eis um excerto do livro "Teoria do Teatro Moderno - A hora zero" de Pedro Barbosa (1982). Além de outras reflexões sobre Dramaticidade e Teatralidade, sobre a falência do Realismo no Teatro, sobre as relações entre Teatro e Televisão e Teatro e Rádio, as citações transcritas abordam as particularidades do Teatro de Rua, especificamente.
 
 
«[...] É preciso distinguir teatro-ao-ar-livre de teatro-de-rua: o primeiro inclui o segundo, mas o segundo não corresponde ao primeiro.
A rua, ao contrário de um estádio, de um parque, de uma praça, não é um lugar onde se estaciona: é o lugar onde se circula, por onde o quotidiano escorre sem paragem. E é aí que o teatro-de-rua vai buscar a sua especificidade. A eleição da rua como lugar cénico implica a fusão da arte com a vida, a infiltração do teatro no quotidiano e, ainda, a mobilidade, o movimento constante ou fugaz, a necessidade de surpreender um público anónimo, atarefado e movediço. [...]
 
Uma vez eliminados os assentos fixos e a divisão rígida do espaço, novas relações entre o público e o espectáculo começam a desenhar-se. Antes de mais nada o teatro vai surpreender um público novo, com grandes probabilidades de atingir aquele que nunca vai ao teatro. [...]
 
Peter Schumann, fundador do Bread and Puppet Theatre, retira da prática alguns ensinamentos: "Na rua, as pessoas não são sensíveis a um teatro realista; é preciso criar metáforas, fantasia, espectáculos bruscos, violentos, sem psicologia; condensar toda uma história em alguns gestos, em algumas palavras; ou então organizar longas paradas, desfiles, cortejos." [...]
 
E aqui chegamos ao momento de compreender por que motivo o teatro-de-rua se associa quase sempre ao combate político, por que motivo a ruptura de cena se liga também a uma ruptura política. É que a rua não satisfaz apenas uma vanguarda estética que recusou a cena tradicional; ela satisfaz também uma vanguarda política que recusa os circuitos burocráticos e comerciais da cultura. Na sociedade de consumo, a rua significa a libertação do teatro enquanto mercadoria. O teatro de rua trabalha em directo, do produtor ao consumidor, dispensando intermediários. Assim se compreende o privilégio concedido à rua pelo teatro militante: ela representa uma tentativa de fuga integral em relação ao sistema e ao aparelho cultural. Toda a crítica da ideologia dominante, se não puser em causa a própria instituição que a suporta, traduz-se numa vitória para a instituição, e portanto num reforço da ideologia.»
 
 
Fonte: Barbosa, Pedro. (2003) Teoria do teatro moderno - A hora zero. Porto: Edições Afrontamento.
 

Stanislavski, A preparação do actor

Stanislavski (1863-1938), fundador com Danchenko do Teatro de Arte de Moscovo, procurou agrupar e aprofundar, no que ficou conhecido por Sistema ou Método, um conjunto de técnicas que conduzissem o actor a uma representação mais realista em cena, solicitada pela estética naturalista.
 
 
«Infelizmente, a disposição criadora natural quase nunca é espontânea. Em casos excepcionais ela de facto aparece, e então o actor tem um desempenho magnífico. No caso frequentíssimo em que o actor não se consegue pôr no devido estado de espírito, ele diz: 'Não estou disposto'. Isto significa que ou seu equipamento criador não está funcionando bem, ou não está funcionando de todo, ou então foi substituído por hábitos mecânicos. Teria sido o abismo da boca de cena que lhe desorganizou as funções? Ou será que ele compareceu perante o público com um papel semi-acabado, com falas e acções nas quais nem ele mesmo pôde acreditar? [...]
 
Uma verdade artística é difícil de desencavar, mas nunca perde o interesse. Um papel construído à base de verdades cresce, ao passo que fenece o que se baseou em clichés. [...] Se pronunciarem alguma fala ou fizerem alguma coisa mecanicamente, sem compreender plenamente quem são, de onde vieram, por quê, o que querem, para onde vão e que farão quando chegarem lá, estarão representando sem imaginação. Esse período, quer seja curto, quer longo, será irreal, e vocês não passarão de autómatos, de máquinas às quais se deu corda.»
 
 
Fonte: Stanislavski, Konstantin. (2001) A preparação do actor. Civilização Brasileira.


 

 

Peter Brook, Conversa sobre Teatro

Em 1991 Peter Brook encontrou-se com professores e artistas responsáveis pelas classes de Teatro e Expressão Dramática em diversos liceus franceses. O resultado foi registado no livro "O diabo é o aborrecimento", de que aqui coloco um excerto. Falou-se das diferenças entre o teatro e a vida, do que é necessário para fazer teatro e do aborrecimento como guia universal para julgar um trabalho. 
 
 
«[...] Nenhuma experiência fresca e nova é possível se não existir previamente um espaço nu, virgem, puro para a receber. [...]
 
Vamos ao teatro para reencontrar a vida, mas se não existe nenhuma diferença entre a vida fora do teatro e a vida dentro do teatro, nesse caso o teatro não tem nenhum significado. Não vale a pena fazê-lo. Mas se aceitarmos que no teatro a vida é mais visível, mais legível do que no exterior, verificamos que é ao mesmo tempo a mesma coisa e uma coisa um tanto diferente.
A partir desse facto podemos propor algumas precisões. A primeira tem a ver com o facto dessa vida ser mais legível e mais intensa porque está mais concentrada. o próprio facto da redução do espaço, da condensação do tempo, cria essa concentração. [...]
 
Um livro pode ter vazios mas no teatro, em cada segundo, o público pode ser perdido se o tempo de uma cena não for o tempo certo. [...] É quase sobre-humano renovar continuamente o interesse, encontrar essa novidade, essa frescura, essa intensidade, segundo a segundo. [...]
 
Se concebermos automaticamente a ideia que para fazer teatro é preciso começar por uma cena, por uma peça, uma encenação, cenários, a luz, a música, sofás... se tomamos isso como uma evidência, optamos por um caminho errado. [...] para fazer teatro só precisamos de uma coisa: a matéria humana. Isso não significa que o resto não tenha importância, mas não é a matéria principal. [...]
 
O olhar do público é o primeiro elemento a ajudar-nos. Se sentimos esse olhar como uma autêntica exigência que pede a cada momento que nada seja gratuito, que nada seja frouxo, mas que tudo seja vivo, compreenderemos que o público não tem uma função passiva. Não precisa "intervir", de se manifestar para participar. Está sempre a participar graças à sua presença desperta. [...]
 
O principal guia que conheço no trabalho, aquele que ouço constantemente, é o aborrecimento. [...] Se o aborrecimento irrompe, virá a tosse, os pequenos ruídos, uma pessoa que se levanta, uma outra que cochicha e por fim, o pior de tudo, alguém que abre o programa!
Não devemos nunca ter a pretensão de que aquilo que fazemos é inevitavelmente interessante, nem dizer nunca que o público é mau.»
 
 
Fonte: Brook, Peter. (1993) O diabo é o aborrecimento - conversas sobre teatro. Porto: Edições Asa.
 
 

Goldoni, A reforma da commedia dell'arte

Breve exposição, por Jorge Silva Melo nas Edições Cotovia, sobre a 'reforma' operada por Carlo Goldoni (séc. XVIII) na Commedia dell'arte, que com este autor transita de comédia de máscaras improvisada (a partir de um roteiro, canovaccio), assente no jogo do actor, para uma comédia de caracteres, inteiramente escrita.
 
 
«A "reforma" de Goldoni está em marcha. As máscaras desapareceram. O autor escreve a peça inteira. Apresenta personagens verdadeiras e nascidas da observação da vida. Elimina as piadas grosseiras. Elimina os absurdos "de efeito". Tem o verosímil como objectivo. Usa uma única língua em cada peça, o veneziano ou o toscano. A sua reforma é o dobre a finados da comédia de intriga que fizera o triunfo do teatro improvisado, com as suas máscaras, os seus entrechos fantásticos, onde o espectador reconhecia desde o início a índole das personagens e dos seus comportamentos, sempre iguais mas com enredos cada vez mais fantasiosos. Com Goldoni, entramos numa comédia (commedia di carattere) em que o carácter da personagem vai sendo revelado perante os olhos do espectador, em tramas menos complicadas, com densidade psicológica. Em que a surpresa vem da revelação da interioridade das personagens e não dos seus feitos exteriores. Ele avança, assim, para um primeiro teatro naturalista, abrindo as portas ao moderno drama burguês. A sua reforma é, de certo modo, a directa consequência do racionalismo iluminista, num momento em que a grande difusão de periódicos confirma o crescente interesse pela crónica quotidiana em que a burguesia se revê, se comenta, se celebra. E é Goldoni quem, em 1750, na primeira edição do seu Teatro afirma que a sua escrita nasce da observação do mundo, da vida real.»


Fonte: Goldoni, Carlo. (2008) Peças escolhidas I. Lisboa: Cotovia.

Aristóteles, Poética

Texto do século IV a.C. atribuído a Aristóteles, discípulo de Platão e preceptor de Alexandre, que trata da Tragédia (dramática) e da Epopeia (narrativa), comparando ambos os géneros. Interessou-me aqui dar maior relevo às suas afirmações sobre a tragédia, suas características e finalidade.
 

«[...] É, pois, a tragédia imitação de uma acção de carácter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [drama], [imitação que se efectua] não por narrativa, mas mediante actores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação das emoções. [...]
 
E como a tragédia é a imitação de uma acção e se executa mediante personagens que agem e que diversamente se apresentam, conforme o próprio carácter e pensamento (porque é segundo estas diferenças de carácter e pensamento que nós qualificamos as acções), daí vem por consequência o serem duas as causas naturais que determinam as acções: pensamento e caracter; e, nas acções [assim determinadas], tem origem a boa ou má fortuna dos homens. Ora o mito é imitação de acções; e, por "mito", entendo a composição dos actos; por "carácter", o que nos faz dizer das personagens que elas têm tal ou tal qualidade; e por "pensamento", tudo quanto digam as personagens para demonstrar o que quer que seja ou para manifestar sua decisão.
 
É, portanto, necessário que sejam seis as partes da tragédia que constituam a sua qualidade, designadamente: mito, carácter, elocução, pensamento, espectáculo e melopeia. [...]
 
Porém, o elemento mais importante é a trama dos factos, pois a tragédia não é imitação de homens, mas de acções e de vida, de felicidade ou infelicidade reside na acção, e a própria finalidade da vida é uma acção, não uma qualidade. Ora os homens possuem tal ou tal qualidade, conformemente ao carácter, mas são bem ou mal-aventurados pelas acções que praticam. Daqui se segue que, na tragédia, não agem as personagens para imitar caracteres, mas assumem caracteres para efectuar certas acções; por isso, as acções e o mito constituem a finalidade da tragédia, e a finalidade é de tudo o que mais importa. [...]
 
Quanto ao espectáculo cénico, decerto que é o mais emocionante, mas também é o menos artístico e menos próprio da poesia. Na verdade, mesmo sem representação e sem actores, pode a tragédia manifestar seus efeitos; além disso, a realização de um bom espectáculo mais depende do cenógrafo que do poeta.[...]
 
Não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verosimilhança e a necessidade. [...] Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta, o particular. [...]
 
É, pois, necessário que um mito bem estruturado seja antes simples do que duplo, como alguns pretendem; que nele se não passe da infelicidade para a felicidade, mas, pelo contrário, da dita para a desdita; e não por malvadez, mas por algum erro de uma personagem, a qual, como dissemos, antes propenda para melhor do que para pior. Que assim deva ser, o passado o assinala. [...]
 
Dizem que a epopeia se dirige a um público elevado, porque não exige a exterioridade dos gestos, e a tragédia, aos rudes, e que, sendo vulgar, decerto que é inferior. [...] Mas a tragédia é superior porque contém todos os elementos da epopeia (chega até a servir-se do metro épico], e demais, o que não é pouco, a melopeia e o espectáculo cénico, que acrescem a intensidade dos prazeres que lhe são próprios. [...]»
 
 
Fonte: Aristóteles. (1992) Poética. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda.
 
 
 

Deniz-Jacinto, Os conflitos e as situações trágicas

No volume III da colecção «O tempo encontrado», Deniz-Jacinto reúne um total de 22 artigos onde discorre sobre as origens da Tragédia Grega no século V a.C. até à sua decadência no século seguinte, abordando ainda a renovação do género no Renascimento.
Aqui se encontra um excerto do 13º artigo intitulado "Os conflitos e as situações trágicas":
 
«A tragédia dos grandes clássicos gregos correspondera a uma época em que se foram definindo e afirmando as estruturas da Democracia, com suas lutas e antagonismos, e profundas modificações em lapso relativamente breve de tempo. Época onde ecoavam reminiscências das sociedades arcaicas, cujas crenças sobreviviam ainda de par com uma nova teogonia e o dealbar da filosofia científica, o nascimento da sofística, a criação do direito na "cidade". [...] A Tragédia tornava-se um instrumento necessário de sondagem da realidade cósmica e humana, e punha o cidadão na presença dos problemas que fundamente o pungiam: o da liberdade, em oposição às restrições que se lhe opunham, e o da vontade, frente a frente com o infortúnio inerente à sua condição. [...] É que, instrumento de conhecimento, a Tragédia foi, igualmente, um instrumento de "controle" social, promovendo a inserção do indivíduo nas normas da polis, aclimatando a consciência individual à vida regularizada pelo direito nascente [Cf. Georges Gurvitch].
A Tragédia é essencialmente um teatro de conflitos; e o herói trágico é um ser que toma sobre si o encargo de "exprimir patologicamente o conflito das crenças colectivas admitidas e da consciência individual." [...]
Duvignaud [...] distingue quatro situações fundamentais na Tragédia [...]
 
- Situação trágica que toma o aspecto dum protesto contra o inelutável, duma reivindicação contra a ordem estabelecida e cuja validade é contestada [...]
- Uma segunda situação consiste na oposição de duas definições da pessoa humana integrada na sociedade, ou na oposição de dois sistemas de crenças [...]
- Outra situação é a que reside na busca dum compromisso, na procura de um apaziguamento que ponha fim à tensão entre posições aparentemente inconciliáveis. [...]
- Há um quarto género de situação trágica que se caracteriza por uma denúncia implícita ou não, do constrangimento inelutável como exigência irracional e absurda. [...]
 
A aprendizagem pela dor [...] é extensível a toda a Tragédia porque em toda ela sempre um doloroso exemplo nos ensina qualquer coisa de novo sobre a nossa humanidade. [...]»
 
 
Fonte: Deniz-Jacinto. (1992) Teatro - III (A Tragédia). Porto: Lello & Irmão Editores.
 
 
 

Stendhal, Sobre a arte de escrever comédias

Se se escreve pouco sobre teatro, sobre a comédia menos ainda. Daí que o Tratado sobre a arte de escrever comédias de Stendhal (1813), inserido no livro "Do Riso, um ensaio filosófico sobre um tema difícil e outros ensaios", seja uma relíquia para quem se interessa pelo assunto. Optei aqui por me limitar à transcrição de algumas das suas observações sobre o assunto.
 
 
«É em vão que se pretende ser artista sem ter engenho.»
 
«Não há um único juízo sem a cooperação de todas as faculdades intelectuais. Não há nada que possa ser exclusivamente atribuído à sensibilidade, à memória, ao juízo ou à vontade.»
 
«Estudar o tédio, essa hedionda causa das belas-artes, é tentar entender o que se passa em nós quando estamos entediados e quando deixamos de estar.»
 
«Nas artes, nunca podemos perder de vista o objectivo. Só quando o atingimos é que damos conta do esforço.»
 
«O intuito moral é um disparate [...]. O único intuito é fazer rir.»
 
«Breve conjunto de princípios:
1º princípio: Ser cómico é enganar-se nos meios de atingir o objectivo.
2º princípio: No homem mal-humorado os efeitos do cómico custam a fazer-se sentir. Para o apaixonado, o cómico não tem grande importância.
3º princípio: Será que em todas as comédias, quando se reconhece o hábito de uma alma viciosa, esse hábito deve sujeitar o homem de vícios às maiores desventuras desse hábito vicioso?
4º princípio: A verdadeira boa disposição francesa deve dar a entender aos ouvintes que o interlocutor está bem-disposto apenas para lhes agradar.»
 
Em Da Comédia (1816), incluído na mesma obra:
 
«Tudo pode ser objecto do cómico [...] apenas o talento escasseia.»
 
«O cómico deve ser exposto com clareza (entendo por cómico tudo o que provoca o riso: um gesto, uma palavra, uma expressão).»
 
«Eis os únicos limites do riso: a compaixão e a indignação.»
 
«O nosso amor-próprio, que exige respeito e por vezes está meio ferido, delicia-se com a visão imprevista da inferioridade de uma pessoa que julgávamos ser superior a nós ou , pelo menos, rival da nossa superioridade.
Se suspeitamos que essa pessoa finge ser superior, então redobra a nossa sede de gozo.»
 
«O mais pequeno detalhe, a mais leve circunstância é decisiva para provocar ou impedir o riso. Nada é mais delicado do que o riso. A ausência da menor condição retira o seu efeito ao aspecto mais cómico, impedindo que o riso surja.»
 
«As generalidades não provocam o riso. Para ridicularizar e fazer rir, os detalhes são essenciais.»
 
«Bocejamos quando vemos outras pessoas bocejarem. É por uma razão semelhante que estar acompanhado favorece o riso.»
 
 
Fonte: Stendhal. (2008) Do Riso - Um ensaio filosófico sobre um tema difícil e outros ensaios. Mem Martins: Publicações Europa-América.
 
 

Diderot, Paradoxo sobre o actor

Redigido entre 1773 e 1777, só publicado em 1830, este texto de Denis Diderot constitui uma rara abordagem, à época, sobre o trabalho do actor. Desde então, a obra tem despoletado forte contestação por parte de vários comediantes, que consideram que Diderot olhou a sua arte como espectador e não como actor. As maiores críticas dirigiram-se, particularmente, à sua defesa da «falta de sensibilidade» do grande actor. Mas este texto não se cinge a esta discussão, propondo a reformulação do modo de fazer teatro, apelando a maior 'verdade' em cena, avançando com a noção de quarta parede, tornando-se, portanto, um precursor da estética realista.
 
 
«Cabe à natureza dar as qualidades da pessoa, a figura, a voz, o critério, a finura. Cabe ao estudo dos grandes modelos, ao conhecimento do coração humano, à vivência, ao trabalho assíduo, à experiência e à prática do teatro aperfeiçoarem a dádiva da natureza. [...] E como seria possível a natureza formar sem a arte um grande actor, se nada se passa no palco exactamente como ao natural, e se todos os poemas dramáticos são escritos segundo um determinado sistema de princípios? [...]
Eu quero-o [ao grande actor] cheio de juízo crítico; nesse homem é-me necessário um frio e tranquilo espectador; exijo, por conseguinte, penetração e nenhuma sensibilidade [no sentido de emotividade], a arte de tudo imitar ou, o que vai dar ao mesmo, uma idêntica aptidão para todas as espécies de caracteres e papéis. [...]
O que confirma a minha opinião é a desigualdade dos actores que interpretam com a alma. Da parte deles não espere nenhuma unidade; o seu jogo é alternadamente forte e fraco, quente e frio, chato e sublime. [...] Ao passo que o actor que interpretar por reflexão, por estudo da natureza humana, por imitação constante segundo um qualquer modelo ideal, por imaginação, por memória, será uno, o mesmo em todas as representações, sempre e de igual modo perfeito; tudo foi medido, combinado, aprendido, ordenado na sua cabeça; na sua declamação não há monotonia nem dissonância. [...] Se houver alguma diferença entre representações, será geralmente com vantagem para a última. [...]
Poderiam estas verdades ser demonstradas, que os grandes actores não concordariam com elas; são o seu segredo. [...]
Nós é que levamos connosco todas estas sensações. O actor está cansado e nós tristes; é que ele agitou-se sem sentir nada, e nós sentimos sem nos agitar. De outro modo, a condição de actor seria a mais desgraçada de todas; mas ele não é a personagem, representa-a; e representa-a tão bem que o confundimos com ela: a ilusão só nos toca a nós; ele sabe muito bem que é outra pessoa.»
 
 
Fonte: Diderot. (1993) Paradoxo sobre o actor. Lisboa: Hiena Editora.