Nathalie Sarraute, Nouveau Théâtre

O Nouveau Roman surge como resposta a uma nova concepção do homem, já não como essência que se concretiza mas como permanente construção, existência. Mas, a par de um Nouveau Roman poder-se-á também falar de um Nouveau Théâtre? Sim, na medida em que à preocupação de expôr uma situação através da intersubjectividade, se pretende a descrição, tão objectiva quanto possível, da interioridade, convidando permanentemente o leitor/espectador à co-autoria de forma a completar o que fica por dizer por se tratar do domínio do indizível.
Nathalie Sarraute [1902-1999] vai descrever nos seus romances a vida interior; mais interessada nas situações do que nas personagens observa o que apelidou de tropismos, os movimentos que a palavra lançada, ou mesmo a expressão de um silêncio, provoca no ouvinte. Se, aparentemente, a transposição deste universo íntimo lhe pareceu impossível de realizar no teatro, Sarraute acabou por aventurar-se, começando pelo teatro radiofónico. 


«[...] Nathalie Sarraute  faz-nos ver o mundo da inautenticidade: faz-no-lo ver por toda a parte. E por trás desse muro? Que há? Precisamente nada. Esforços vagos para fugir a qualquer coisa que se adivinha na sombra. A Autenticidade, verdadeira relação com os outros, connosco, com a morte, é sugerida por toda a parte, mas invisível. Pressentimo-la porque lhe fugimos. [...] Há a fuga para os objectos que reflectem pacificamente o universal e a permanência, a fuga para as ocupações quotidianas, a fuga para o mesquinho. [...]
Sobre o "Le Planetarium" de Nathalie Sarraute, Michel Butor escreve: "Onde quer que estejamos, e com quem quer que seja, mentimos na nossa conversação, começamos a lamentar palavras mal as acabamos de pronunciar: não era isso que eu queria dizer, a verdade não era isso, devia ter... Assim todas as palavras que pronunciamos encontram-se rodeadas, comandadas ou contrariadas, ampliadas ou atenuadas por todo um enxame de palavras que não pronunciamos. Estas palavras têm uma ressonância em nós que se prolonga, e que talvez as vá fazer emergir alguns dias depois numa narrativa; é como uma pedra que cai na superfície de um tanque e que provoca ondas que vão até aos bordos. Mas atenção, esta frase que acabamos de dizer, e será quase sempre necessário precisá-lo, esta frase que acaba de nos escapar não é somente seguida de repercussões, de remoinhos próximos ou longínquos, é também precedida de preparativos e esperas." [...]»


Fonte: Margarido, A. & Portela Filho, A. (1962) O Novo Romance. Lisboa: Editorial Presença.

Obra Aberta, Umberto Eco

Obra Aberta de Umberto Eco (1962) ensinou-nos que a interpretação dos textos literários não é tarefa que busque ir de encontro a um sentido pré-determinado pelo autor; ao invés, conta com o contributo do leitor, de cada leitor e em cada momento, para a construção de um sentido que assim não pode conhecer a clausura de um único caminho. O leitor deixa de ser entendido como entidade passiva, mero receptor/descodificador de um sentido para o qual não traz qualquer contributo. Quem já leu o mesmo livro com idades bem diferenciadas ou confrontou a sua leitura com a de outros terá consciência do que se fala, ou seja, das possibilidades de leitura que um mesmo texto pode despoletar. Trata-se de uma nova dialéctica entre a obra e o intérprete.


«[...] Em estética, com efeito, tem-se discutido acerca da "definibilidade" e acerca da "abertura" de uma obra de arte: e estes dois termos referem-se a uma situação fruitiva que todos nós experimentámos e que muitas vezes somos levados a definir: uma obra de arte é um objecto produzido por um autor que organiza uma rede de efeitos comunicativos de modo que cada possível fruidor possa recompreender (através do jogo de respostas à configuração de efeitos, sentida como estímulo pela sensibilidade e pela inteligência) a própria obra, a forma originária imaginada pelo autor. Nesse sentido o autor produz uma forma, em si completa, na intenção de que tal forma seja compreendida e usufruída tal como ele a produziu; todavia, no acto de reacção à rede dos estímulos e de compreensão da sua relação, cada fruidor leva uma situação existencial concreta, uma sensibilidade particularmente condicionada, uma determinada cultura, gostos, propensões, preconceitos pessoais, de modo que a compreensão da forma originária apareça segundo uma perspectiva individual. [...] Uma obra de arte, forma acabada e fechada na sua perfeição de organismo perfeitamente calibrado, é igualmente aberta, com possibilidade de ser interpretada de mil modos diferentes sem que a sua irreproduzível singularidade seja por isso alterada. Cada fruição é assim uma interpretação e uma execução, pois que em cada fruição a obra revive numa perspectiva original. [...] O autor oferece, em suma, ao fruidor uma obra para acabar: não sabe exactamente de que modo a obra poderá ser terminada, mas sabe que a obra terminada será sempre, porém, a sua obra, não uma outra, e que no final do diálogo interpretativo ter-se-á concretizado uma forma que é a sua forma, embora organizada por um outro de um modo que ele não podia prever completamente: uma vez que ele, em substância, tinha proposto possibilidades já organizadas racionalmente, orientadas e dotadas de exigências orgânicas de desenvolvimento. [...]»


Fonte: Eco, Umberto (1989) Obra Aberta. Lisboa: Difel.

Cronologia da História Cultural por Dietrich Schwanitz

Retirada do livro "Cultura - Tudo o que é preciso saber" de Dietrich Schwanitz, esta cronologia (que mutilei para tornar mais concisa) ajuda-nos a perceber as grandes mudanças na História Cultural, informação importante para a contextualização do posicionamento de artistas e obras. Se a escolha de Schwanitz pode ser discutível nalguns momentos históricos, por aquilo a que dá relevância ou pelo que omite, mais questionável ainda será esta versão mutilada, mas, creio, pode ser na mesma útil.


«CRONOLOGIA DA HISTÓRIA CULTURAL

508 a.C. - Reformas democráticas em Atenas

499/477 a.C. - Guerras contra os persas, ascensão de Atenas

443/429 a.C. - Florescimento de Atenas sob Péricles

431 a.C. - Eurípides, Medeia

422 a.C. - Sófocles, Antígona

431 a.C./404 a.C. - Guerra do Peloponeso entre Atenas e Esparta

399 a.C.- Morte de Sócrates

344/323 a.C. - Conquista do Oriente por Alexandre Magno, início da época helénica

146 a.C. - Conquista da Grécia por Roma

31 a.C. - Início da época imperial

7 a.C./30 d.C. - Vida de Jesus de Nazaré

140 - Ptolomeu resume a concepção geocêntrica do mundo

312 - Conversão de Constantino ao cristianismo

410 - Destruição de Roma pelos visigodos

622 - Início da expansão do Islão

1096 - Primeira cruzada

1150 - Redescoberta das obras de Aristóteles

1310/14 - Dante, A Divina Comédia

1455 - Primeira bíblia impressa por Guttenberg

1492 - Colombo descobre a América, expulsão dos judeus de Espanha

1498 - Leonardo da Vinci, Última Ceia

1504 - Miguel Ângelo, David

1517 - As 95 teses de Lutero, início da Reforma

1532 - Nicolau Maquiavel, O Príncipe

1534 - Lutero termina a tradução da bíblia

1545-63 - Concílio de Trento, início da Contra-Reforma

1590/1611 - William Shakespeare escreve os seus dramas

1605 - Miguel de Cervantes, Dom Quixote

1616 - O Papa declara herética a teoria coperniciana

1618/48 - Guerra dos 30 anos

1637 - René Descartes, Discurso do Método

1669 - Molière, Tartufo

1719 - Daniel Defoe, Robinson Crusoe

1723 - Johann Sebastian Bach, Paixão de S. Mateus

1726 - Jonathan Swift, As viagens de Gulliver

1776 - Declaração da Independência dos EUA

1781 - Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura

1787 - Mozart, Don Giovanni

1789 - Revolução Francesa, Declaração dos Direitos do Homem

1807 - Hegel, Fenomenologia do Espírito

1808 - Johann Wolfgang von Goethe, Fausto

1848 - Revolução de 1848, Manifesto Comunista

1859 - Charles Darwin, A origem das espécies

1867 - Karl Marx, O Capital

1869 - Leo Tolstoi, Guerra e Paz

1883/85 - Friedrich Nietzsche, Assim falou Zaratustra

1900 - Sigmund Freud, A interpretação dos sonhos

1914/18 - I Guerra Mundial

1917 - Revolução Russa

1939/45 - II Guerra Mundial

1949 - George Orwell, 1984; Simone de Beauvoir, O segundo sexo

1952 - Samuel Beckett, À espera de Godot

1961 - Michel Foucault, História da Loucura

1963 - Movimento pelos direitos cívicos de Martin Luther King

1968/70 - Movimento estudantil

1985 - Início da Perestroika

1989/90 - Colapso do comunismo no leste europeu, unificação da Alemanha e fim da guerra fria»


Fonte: Schwanitz, D. (2005) Cultura - Tudo o que é preciso saber. Lisboa: D. Quixote.

A Arte e a Revolução, Richard Wagner

O compositor alemão Richard Wagner (1813-1883) redigiu vários textos importantes para a reflexão sobre a obra de arte, nomeadamente este "A Arte e a Revolução" de 1849; aqui defende o fim da separação das diferentes linguagens artísticas (poesia, música, escultura, arquitectura), à semelhança do que acontecia na Tragédia Antiga (o drama como «a mais elevada obra de arte que é possível conceber»), e o livre acesso à cultura por parte de toda a comunidade, opondo-se ao elitismo e à desigualdade reinante. Contra a mercantilização da arte, Wagner vê a necessidade de uma Revolução que tome o homem como ser livre e criativo. O objectivo, quer da Revolução quer da Arte, é o «homem forte e belo».


«[...] Confrontemos agora nos seus traços mais importantes a arte que publicamente se pratica na Europa moderna e a arte pública dos Gregos, para podermos pôr a nu a diferença característica que as separa.
A arte pública dos Gregos que atingiu o apogeu na tragédia era expressão do que havia de mais profundo e mais nobre na consciência popular. O que há de mais profundo e de mais nobre na consciência laica contemporânea é a pura contradição, a negatividade que atravessa a nossa arte. [...]

Nos vastos espaços do anfiteatro grego era a totalidade do povo que participava nas representações. Pelo contrário, nos nossos mais distintos teatros preguiçam apenas os ricos. Os Gregos iam buscar os materiais da sua arte aos produtos mais elevados da cultura comunitária. Nós vamos buscá-los à barbárie social mais acabada. A educação do homem grego fazia dele, no plano do corpo como no do espírito, desde a infância, um verdadeiro objecto da actividade artística e do prazer estético. O embotamento típico da educação contemporânea, na maior parte dos casos meramente orientada na perspectiva do lucro industrial, dá-nos uma satisfação idiota e simultaneamente orgulhosa da nossa inaptidão artística e ensina-nos a procurar os objectos da experiência estética fora de nós, aproximadamente com o mesmo tipo de desejo com que o depravado procura junto de uma prostituta um fugaz prazer amoroso. [...]
Se o artista grego era recompensado antes de mais pelo seu próprio prazer na obra de arte e depois pelo sucesso e pela aprovação públicos, o artista moderno está amarrado a um contrato e a um salário. Estamos então em condições de caracterizar com rigor a diferença essencial: a arte pública dos Gregos era de facto arte, ao passo que a nossa é salariato artístico. [...]
Com a posterior decadência da tragédia a arte foi perdendo cada vez mais a sua qualidade de expressão da consciência pública. O drama desmembrou-se nas respectivas partes constitutivas; a retórica, a escultura, a pintura ou a música abandonaram o bailado unitário em que se moviam até então para seguirem cada uma o seu próprio caminho e se desenvolverem por conta própria, sujeitas a uma solidão necessariamente egoísta. [...]
A obra de arte perfeita, a expressão grandiosa e una de uma sociedade livre e bela, o drama, a tragédia, não renasceu - por maiores que tenham sido alguns dos tragediógrafos entretanto aparecidos - pela simples razão de que não pode renascer e, pelo contrário, tem que voltar a nascer por inteiro. [...]»


Fonte: Wagner, R. (2000) A Arte e a Revolução. Lisboa: Edições Antígona.

O Teatro no romance de Strindberg "O Salão Vermelho"

Considero sempre curioso o cruzamento de informação obtida em fontes diversas sobre o mesmo autor e o seu universo. August Strindberg (1849|1912) é conhecido principalmente pelo seu teatro, sendo, provavelmente, "A Menina Júlia" a sua peça mais representada pelo mundo. Mas é também um romancista notável. Aqui deixo um excerto de "O Salão Vermelho", romance onde é representada a sociedade sueca do final do século XIX - um diálogo entre um aspirante a actor e um director, que não deixará de interessar aos fazedores de teatro.



«[...] Rehnhjelm respondeu que queria representar. [...]

- Posso dar-lhe a minha honesta opinião, senhor? Hmm?  Esqueça o teatro!

- Impossível!

- Repito, esqueça o teatro! É a pior carreira de todas. Uma interminável humilhação, situações desagradáveis, fisgas e flechas, senhor. Acredite em mim quando lhe digo que tornarão a sua vida tão amarga que desejaria nunca ter nascido.

Ele parecia completamente convencido, mas a resolução de Rehnhjelm era inquebrantável.

- Anote as minhas palavras: o meu conselho é o de que deve desistir! Digo-lhe que as perspectivas são tão soturnas que poderia acabar sem nada para além de papéis de figurante durante anos. Pense nisso! E, depois, não venha lamentar-se para junto de mim. Uma carreira no palco é muito difícil, senhor; se soubesse o quão difícil é, nunca se meteria nisso. Acredite em mim, será infernal, isso posso garantir-lhe.

As suas palavras foram em vão. [...]»


Fonte: Strindberg, A. (2015) O Salão Vermelho. Santa cruz: E-Primatur.

Artaud, Conferência no Vieux-Colombier a 13.01.1947

Idolatrado por uns, menosprezado por outros, Antonin Artaud (1896-1948) é um nome que não podemos ignorar quando falamos nas vanguardas dos inícios do séc. XX. Sendo "O Teatro e o seu Duplo" (1938) o seu livro mais importante para pensar o Teatro (onde propõe um Teatro da Crueldade que não se restrinja à palavra ignorando o corpo, não dando primazia à racionalidade mas sim à experiência ritualista, envolvendo verdadeiramente o espectador com a abolição da distinção palco-plateia), aqui deixo algumas transcrições de uma conferência polémica, a última aparição pública de Artaud, no Vieux-Colombier a 13 de Janeiro de 1947, que ele mesmo intitulou "História vivida de Artaud-Momo, frente-a-frente" e um excerto de uma das cartas dirigidas ao editor Henri Parisot (incluídas na edição aqui citada). Os vários testemunhos que ficaram desta sessão pública nem sempre são convergentes, mas sabemos que foi subitamente interrompida pelo próprio Artaud, embora muitos considerem que o essencial tinha já sido dito.
Artaud nunca fez distinção entre a arte e a vida, trazendo para os seus escritos sobre Teatro as situações mais marcantes que vivenciou, como os seus internamentos em instituições psiquiátricas ou a viagem à terra dos Tarahumaras (que registou em livro editado ainda em vida) e o uso de drogas.
O homem que tanto se bateu pela liberdade criativa e de expressão, contra todos os tipos de manipulação e controlo, contra a domesticação do ser humano, passou boa parte da sua vida preso como louco, apesar de afirmar terminantemente «nunca fui louco nem doente» mas poeta. 


«[...] Temos a religião, o exército, a polícia, os costumes, as instituições que desejamos e merecemos, e a sociedade forjou, deveria eu dizer que lentamente, com o tempo, emanou esta arma tão maravilhosamente afinada e pungente, tão pérfida e meticulosamente ajustada, que se chama a psiquiatria, para desencorajar pela base (e, por exemplo, e tal como noutros séculos se envenenava), desencorajar as vontades que pudessem levantar-se para repor as coisas no seu lugar. […]
A sociedade chama-me louco porque me come, e come outros, não ao acaso, não psicanaliticamente em imagem, mas de uma maneira sistemática e concertada, e quis assassinar-me e fazer-me desaparecer por eu ter visto que ela me comia e sempre ter querido dizer, aberta e publicamente, que as únicas relações que teve comigo foram por ter querido forçar-me a deixá-la comer-me à vontade.
A consciência não se fica pelas relações exteriores: bom dia, boa tarde, como vais, gosto de ti, por que não queres tu amar-me, que temos com os seres.
Transborda do espaço imediato e visível do corpo humano.
Quer isto dizer que o corpo é maior e mais vasto, mais extenso, com mais pregas e reviravoltas sobre si próprio do que o olhar imediato pode distinguir e conceber quando o vê.
O corpo é uma multidão excitada, uma espécie de caixa de fundo falso que nunca mais acaba de revelar o que tem dentro.
E tem dentro toda a realidade.
Querendo isto dizer que cada indivíduo existente é tão grande como a imensidão inteira, e pode ver-se na imensidão inteira.
Quem o não vê tem merda nos pés que o impede de evoluir num plano mais vasto do que o seu nariz.
Eu nunca deixei de ver, não o que todas as pessoas me dizem mas o que são quando não falam, não dizem nada e estão longe.
E se eu conheço esta faculdade do corpo humano, não sou o único, a multidão dos iniciados também a conhece. E mesmo dos não iniciados. […]
A massa faz de conta que não gosta das ideias, mas mente porque foi ela quem as impôs.
Tudo o que se chama cérebro vem dela porque ela achou que era essa a melhor forma de se unir a tudo quanto tinha, até ali, recusado. […]
O teatro da crueldade não é de hoje, grandes personagens desde sempre fizeram parte dele: Eurípides, Sófocles, Ésquilo, Chaucer, Ford, Cyril Tourneur, Villon, Baudelaire, Gérard de Nerval, Edgar Poe, e quem sabe se também o senhor ou a senhora ou menina, seja como for o inabordável conde de Lautréamont. [...]»

Carta a Henri Parisot. 
Rodez, 9 de Outubro de 1945

«[…] Desde há 30 anos passo a vida a localizar pelo mundo as seitas que actuam sobre a consciência das pessoas, e creio que as conheço todas. Há-as no Afeganistão, no Turquestão, no Tibete, entre os bonzos das lamarias, há-as entre os muçulmanos das Índias, mas as mais temíveis são dos que ainda se não confessam iniciados mas dia e noite trabalham no oculto buscando apoio no mistério do corpo humano. Dizem estas seitas que são de espírito, e afirmam os espíritos dos corpos onde trabalham que são donos desses corpos e do interior dirigem o eu e o corpo do homem ou da mulher que os transportam. Sendo isto o mais tetanizante e epilepsiante pensamento de que tive alguma vez notícia. A religião católica cristã é que está na base deste facto consumado. Porque se quis espírito e não corpo ou, como na religião intrínseca de Jesus Cristo, no princípio do corpo vê um vazio que fica cheio e a pouco e pouco chega ao cheio que também só é seu desprendimento. Querendo isto dizer que existe um vórtice-abismo na base de cada corpo vivo, um anjo que a pouco e pouco o vai enchendo com as caves da eternidade e, por submersão, quer ocupar nele o seu lugar. Por ter querido divulgar estas coisas é que em todo o lado me chamaram louco e em 1937 acabaram por me meter na prisão, deportar, agredir num navio, internar, envenenar, encamisar, pôr em estado de coma, e ainda não consegui recuperar a liberdade. […]
A vida não é este tédio destilado em que a nossa alma se faz macerar há sete eternidades, não é este torno infernal onde as consciências criam bolor e que precisa de música, poesia, teatro e amor para de vez em quando explodir, embora tão pouco que nem vale a pena falar disso. O homem da terra aborrece-se de morte em si mesmo e tão profundamente, que já não tem consciência disso. Deita-se, dorme, levanta-se, passeia, come, escreve, engole, respira, caga como uma máquina que puseram a trabalhar no mínimo, como um resignado que enterraram na terra das paisagens e que a paisagem subjugou como um servo garrotado no cepo de um mau corpo e obrigado a leituras, ao bom dia, à boa noite, ao como passa, faz bom tempo, a chuva vai refrescar a terra, o que dizem as notícias, venha lá a casa tomar um chá, jogar ao gamão, às cartas, ao jogo de bolas, ao jogo de damas e ao xadrez, embora não seja disto que se trata, quero eu dizer que isto não define a vida imunda em que vivemos. Define-a terem-nos destilado a todos as nossas percepções, as nossas impressões, e não as vivermos mais do que a conta-gotas, respirando por cima e pelo rebordo o ar das paisagens, e o amor pelo exterior do cesto, sem podermos ocupar todo o cesto. E não é porque o amor não tenha alma, a alma do amor é que já não existe. Comigo é o absoluto ou nada, e aqui está o que tenho a dizer a este mundo sem alma nem agar-agar*.É que há um limo no surrealismo de transe, no estado de transe, que as religiões e os seus rituais desde há sete eternidades ressequiram servidos por todos os burgueses e todos os cobardes da terra e da vida. E este limo é regenerador, não se chama a poesia dos poetas nem a música das harmonias, não é nome mas o próprio corpo da alma, a alma que o cristo expulsou da vida para a conservar no seu paraíso (aqui jaz) e as seitas dos iniciados da terra desviaram para centros secretos tendo por fim dá-la a conta-gotas, diariamente, a quem lhes apetece. [...]»

*O ágar-ágar é uma alga muito utilizada em microbiologia para culturas sólidas de bactérias. 

Fonte: Artaud, A. (1995) História vivida de Artaud-Momo (frente-a-frente). Lisboa: Hiena Editora.

A visitar: https://www.youtube.com/watch?v=qhxbVaIN7KI

Strindberg, Sobre o Naturalismo no teatro

Embora o percurso de August Strindberg (1849|1912) pelo teatro não se cinja ao Naturalismo, o prefácio à peça "Menina Júlia" (1888) é elucidativo da aproximação à realidade que o teatro da 2ª metade do séc. XIX experimenta e suas repercussões na cena dramática, numa tentativa em dar conta da complexidade da vida humana.
Neste texto, Strindberg reflecte sobre a construção das personagens, a linguagem, a estrutura do drama, etc. numa busca por um teatro mais intimista, ou seja, mais próximo do espectador e da sua realidade quotidiana.

Strindberg by Christian Krogh

«[...] A concepção burguesa da imutabilidade da alma passou para o teatro onde a classe média tem tido sempre o domínio. "Carácter" tornou-se sinónimo de homem acabado e fixado: alguém que está sempre embriagado, que é continuamente cómico ou patético. Para o desenho basta um defeito (um pé coxo, uma perna de pau, o nariz vermelho) ou a repetição sistemática da mesma frase. [...]
Não acredito nos caracteres simplificados. Um juízo sumário do autor sobre os homens (este é louco; aquele é cruel este é ciumento; aquele é sovina) devia ser contestado e recusado pelos naturalistas, que conhecem a complexidade da alma humana e sabem que o vício tem um reverso muito parecido com a virtude. [...]

Pus os meus caracteres a usar o cérebro irregularmente como acontece na vida real em que, durante uma conversa, uma roda do cérebro pode, mais ou menos por acaso, engrenar noutra roda e em que nenhum assunto fica completamente esgotado. Essa a razão por que o diálogo vagueia. Nas primeiras cenas acumula-se material que é depois trabalhado, repetido, transformado, desenvolvido como o tema de uma composição musical. [...] Fiz assim porque me pareceu que o curso psicológico dos acontecimentos é o que mais interessa ao nosso tempo. [...]

Pelo que diz respeito à técnica, tentei, como experiência, suprimir a divisão em actos. Fiz assim porque penso que a nossa decrescente capacidade de ilusão pode ser perturbada por intervalos, durante os quais o espectador tem tempo de reflectir e escapar à sugestão do autor hipnotizador. [...]
Pelo que toca ao cenário, fui pedir à pintura impressionista a sua assimetria, a sua concisão prenhe e abrupta - e penso que deste modo intensifiquei as possibilidades de criar ilusão. [...] a imaginação é posta em funcionamento e preenche o que falta aos olhos. [...] Com um cenário único pode esperar-se realismo na imagem. [...]

Outra inovação necessária seria a abolição da ribalta. [...] Torna-se difícil fazer passar de forma completa e eficaz o jogo do olhar para além da ribalta. [...]

Não tenho ilusões sobre a minha capacidade de persuadir os actores a representarem para o público e não com ele, embora isso fosse altamente desejável. [...] Gostava que cada cena fosse feita no local exacto que a sua representação exige. [...]

Representando num palco pequeno, um drama psicológico moderno em que as reacções subtis da alma se devem reflectir pela expressão do rosto mais que pelo gesto, pelo grito ou pelo som sem significado, é o terreno ideal para experiência de uma iluminação lateral forte, com os actores sem maquilhagem ou com muita pouca.
Se, além disso, a orquestra com as luzes incomodativas das estantes e com as caras dos músicos voltadas para o público, se pudesse tornar invisível; se a plateia (a "orquestra") pudesse ser levantada de modo a que os olhos dos espectadores ficassem a um nível mais alto que os joelhos dos actores; se se eliminassem os camarotes de boca, com os seus espectadores gulosos e retardatários (a minha "bête noire"); se houvesse escuro absoluto na sala enquanto a peça se representa; e se, acima de tudo, pudéssemos ter um palco íntimo e uma sala íntima [como será o Teatro Íntimo que Strindberg inaugurou em Estocolmo e que subsistiu de 1907 a 1910] - assistiríamos talvez ao nascimento de um drama novo, e o teatro voltaria a ser uma instituição de prazer para pessoas cultas. [...]»


Fonte: Strindberg A. (1980) Menina Júlia. Lisboa: A Regra do Jogo.



Nietzsche, A Origem da Tragédia

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844|1900), profundo conhecedor da cultura grega, escreve "A Origem da Tragédia e o Espírito da Música" em 1871, onde defende que a Arte é «a missão mais elevada e a actividade essencialmente metafísica da vida humana».
Ainda que mais tarde, nomeadamente num posfácio de 1886, tenha considerado este livro da sua juventude «mal escrito, difícil, pouco cuidadoso com o rigor lógico» e na sua obra abundem as contradições e a ambiguidade, algumas ideias aqui apresentadas pela 1ª vez foram depois desenvolvidas com maior profundidade e alcance, permanecendo basilares no seu pensamento: a compreensão do fenómeno dionisíaco e a rejeição do socratismo.
Nietzsche rejeita o Iluminismo, que crê no poder da razão e no progresso, aceitando a vida como problemática e causadora de sofrimento. A Arte, e particularmente a Tragédia Ática (Ésquilo e Sófocles, pois com Eurípides o método racionalista imiscui-se na tragédia), apresenta-se como símbolo das duas forças fundamentais do ser: o Dionisíaco (Diónisos, deus do vinho) e o Apolíneo (Apolo, deus profético, da sabedoria iluminada pelo sentido da medida, da reflexão), forças opostas que se combatem mutuamente, mas interdependentes. A Tragédia Antiga é a representação apolínea do dionisíaco.


«[...] Debaixo do encantamento dionisíaco, não é apenas a aliança do homem com o homem que se renova, mas é também a natureza alienada, hostil ou subjugada, que celebra de novo a sua festa de reconciliação com o seu filho pródigo, o homem. [...]
Todo o artista é um "imitador", quer se trate do artista apolíneo do sonho, quer se trate do artista dionisíaco da embriaguês, quer se trate ainda, como é o caso da tragédia grega, de um artista da embriaguês e do sonho, ao mesmo tempo. [...]
Para poderem viver os Gregos, impelidos pela mais imperiosa das necessidades, criaram os seus deuses. [...]

Receio que, com a nossa veneração actual por tudo o que é natural e real, cheguemos aos antípodas do idealismo, isto é, à terra dos museus de figuras de cena.[...]
Era a natureza, ainda não manchada por forma alguma de conhecimento, ainda não rasgada por qualquer forma de civilização, o que o grego via na imagem do sátiro. [...]

Mas é preciso ter sempre presente no espírito que o público da tragédia grega se encontrava no coro da orquestra, de que não havia oposição alguma entre o público e o coro, porquanto, em união, todos formavam um grande coro sublime dos sátiros, dançando e cantando, ou homens que se faziam representar por estes sátiros.
Podemos então considerar que o coro, na forma primitiva da tragédia original, era uma espécie de espelho em que o homem dionisíaco se reflectia a si próprio - fenómeno que se nos torna muito claro, por analogia com o actor verdadeiramente dotado que vê pairar diante dos seus olhos, como se estivesse quase a tocá-la, a personagem que está a representar. [...]

O encantamento é a condição prévia de toda a arte dramática. [...]
Até Eurípedes nunca deixou Diónisos de ser o herói trágico e que todas as personagens ilustres do teatro grego, Prometeu, Édipo, etc., não foram mais do que máscaras deste herói original - Diónisos. [...] Com ele [Eurípides] o homem comum deixou os bancos dos espectadores e subiu ao palco, e o espelho que outrora reflectia só traços nobres e altivos passou a reproduzir escrupulosamente ecom minúcia mesmo até as disformidades da natureza. [...] A mediocridade burguesa, na qual Eurípedes punha todas as suas esperanças políticas, passou a ter voz, enquanto que até então só o semideus e o sátiro inebriado, criatura semi-humana, haviam determinado o carácter da linguagem. [...]

Sócrates, o herói dialéctico do drama platónico, assemelha-se ao herói euripediano que se vê obrigado a justificar os seus actos por argumentos e contra-argumentos e que, por isso mesmo, se arrisca a não ser capaz, muitas vezes, de suscitar a nossa compaixão trágica. [...]
O mito trágico só pode compreender-se como uma representação concreta da sabedoria dionisíaca, por processos artísticos apolíneos. [...]»


Fonte: Nietzsche. (2002) A Origem da Tragédia. Lisboa: Lisboa Editora.

Horácio, Arte Poética

Horácio (65 a.C./8 a.C.) escreve a Arte Poética (também conhecida por Epístola ad Pisones, família a quem é dedicado o texto) sobre Teoria Literária, nomeadamente sobre a unidade da concepção poética, a ordem e o estilo, os géneros literários e a crítica poética, seguindo alguns dos princípios já presentes na Poética de Aristóteles (sec. IV a.C).
Ainda que o Teatro tivesse perdido a importância que conheceu na Grécia Antiga, na Roma do Imperador Augusto há uma tentativa de recolocar o teatro no seu devido lugar e Horácio lembra a necessidade de seguir o exemplo grego.
Retiramos alguns excertos que resumem bem as ideias defendidas por Horácio neste texto: a unidade e simplicidade do texto, a coerência dos caracteres, a necessidade de verosimilhança, a divisão em 5 actos, o papel moderador do coro, assim como a necessidade de um trabalho árduo por parte do poeta, pois a poesia não nasce de geração espontânea.


«Em suma: faz tudo o que quiseres, contanto que o faças com simplicidade e unidade. [...]
Vós que escreveis, escolhei matéria à altura das vossas forças e pesai no espírito longamente que coisas vossos ombros bem carregam e as que eles não podem suportar. [...]
A virtude e beleza da ordem consistirão - ou eu me engano - em que se diga imediatamente o que tem de ser dito, pondo muitos pormenores de lado e omitindo-os de momento: que o autor do poema prometido, ora escolha este aspecto, ora despreze aquele. [...]
Que cada género bem distribuído ocupe o lugar que lhe compete. [...]
Não basta que os poemas sejam belos: força é que sejam emocionantes e que transportem, para onde quiserem, o espírito do ouvinte. Assim como o rosto humano sorri a quem vê rir e aos que choram se lhes une em pranto, também se queres que eu chore, hás-de sofrer tu primeiro. [...] Tristes palavras só dão bem com rosto pesaroso e com o irado as ameaçadoras; com rosto jovial palavras folgazãs e com o severo as que mostrem seriedade. [...] Tem igualmente de tomar-se em conta, se quem fala é deus ou é herói, velho sisudo ou homem fogoso, na flor da idade. [...] Segue, ó escritor, a tradição ou imagina caracteres bem apropriados [...] ousando conceber em cena nova personagem, então que ela seja conservada até ao fim como foi descrita de início e que seja coerente. [...]
De tal modo cria ficções, de tal modo mistura fábulas com a verdade, que nem o meio destoa do princípio nem o fim do meio. [...]
Há acções que se representam no palco, outras só se relatam depois de cometidas. O que se transmitir pelo ouvido comove mais debilmente os espíritos do que aquelas coisas que são oferecidas aos olhos., testemunhas fiéis, e as quais o espectador apreende por si próprio. Não faças, no entanto, representar na cena o que deva passar-se nos bastidores, retira muitas coisas da vista, essas que melhor descreve a facúndia de uma testemunha. [...]
Que a peça nunca tenha mais do que cinco actos nem menos do que esse número. [...]
Que na peça não intervenha um deus, a não ser que o desenlace seja digno de um vingador; nem tão-pouco se canse um quarto actor a falar na mesma cena.
Que o coro defenda a sua individualidade recitando o seu papel como um actor, e não cante, no meio dos actos, o que não se relacionar nem se adaptar intimamente ao argumento. Que ele seja propício aos bons e, com palavras amigas, os aconselhe, aos irados insuflando calma e aos que temem pecar, concedendo amor. 
Que louve as iguarias da mesa frugal e assim também a justiça saneadora e as leis, tal como a paz que se goza de porta aberta.
Que não revele os segredos confiados e peça aos deuses e lhes suplique que a Fortuna volte aos desgraçados e abandone os soberbos. [...]
Censurai todo o poema que não for aperfeiçoado com muito tempo e muita emenda e que, depois de retalhado dez vezes, não for castigado até ao cabo.[...]
Recebe sempre os votos, o que soube misturar o útil ao agradável, pois deleita e ao mesmo tempo ensina o leitor. [...]
Há quem discuta se o bom poema vem da arte se da natureza: cá por mim, nenhuma arte vejo sem rica imitação e tão-pouco serve o engenho sem ser trabalhado: cada uma destas qualidades se completa com as outras e amigavelmente devem todas cooperar. [...]»


Fonte: Horácio. (2001) Arte Poética. Mem Martins: Editorial Inquérito.

Zola, O Naturalismo no Teatro

Émile Zola (1840|1904) foi um dos principais defensores do Naturalismo, quer na Literatura quer no Teatro, numa aproximação à vida real do leitor/espectador.
Influenciado pelos avanços da ciência e por correntes como o Positivismo e o Evolucionismo, Zola procura denunciar as injustiças sociais presentes no seu século, procurando explicações no ambiente e contexto histórico em que as personagens estão inseridas, assim como no seu passado.



Em 1924, Émile Zola escreve sobre a necessidade de maior realismo no Teatro:

«Quero falar do movimento naturalista que se aplica, no teatro, somente nos cenários e acessórios. Sabemos que há duas posições totalmente contrárias sobre o assunto: uns querem que mantenhamos a nudez dos cenários clássicos; os outros exigem uma reprodução exacta do meio, por muito complicado que seja. Eu partilho, é claro, a opinião dos últimos.
Como não sentir o interesse que um cenário acrescenta à acção? E como os actores ficam à vontade, como aí vivem plenamente a vida que têm de viver! É a intimidade, um lugar natural e acolhedor. Eu sei que para se gostar é necessário gostar de ver os actores viver a peça e não representar a peça. E nisto se resume uma fórmula totalmente nova. [...]

Vejam como o cenário abstracto do século XVII corresponde à literatura dramática do seu tempo. O meio ambiente ainda não é importante. Dá a ideia que a personagem anda no ar, afastada dos objectos exteriores. Sem influência nenhuma. A personagem mantém-se no estádio de tipo, um simples mecanismo cerebral. O teatro dessa época usa o homem psicológico e ignora o homem fisiológico. Nessas condições, o cenário é inútil. Não importa o lugar onde o drama se desenrola, já que não tem qualquer impacto sobre a personagem. [...] A verdade dos cenários, dos figurinos, foi-se impondo pouco a pouco até na própria escrita dramática. [...]

Mas, no fundo, continuamos a encontrar a tradição de majestade, de representação solene. Alguns actores franceses a representar parecem padres a oficiar. Não conseguem subir a um palco sem se julgarem logo sobre um pedestal para onde toda a terra olha. E assumem poses e saem imediatamente da vida para entrar no ramerame do teatro naqueles seus gestos falsos e forçados que fariam partir de rir [se estivessem] na rua. As entradas em cena são acompanhadas de um bater de calcanhar para anunciar e marcar bem a personagem. Os efeitos são constantes e para além do verosímil, com a única intenção de ocupar toda a cena e puxar os aplausos. Ele são jogos fisionómicos para o público, poses de galã, a coxa esticada, a cabeça de lado, mantida numa posição favorável. Não andam, não falam, não tossem como na vida. Vê-se que estão a representar e que o esforço que fazem é para serem diferentes das pessoas de maneira a espantar os burgueses. [...]

As nossas personagens modernas com individualidade e agindo sob o império de influências do que as rodeia, vivendo a nossa vida no palco, sentam-se e por isso precisam de cadeiras, escrevem, necessitando de mesas, vestem-se, comem, aquecem-se, e por isso precisam de um mobiliário completo. [...] Esta é uma necessidade da nossa fórmula dramática actual.»


Fonte: Vasques, Eugénia. (2011) Antologia de textos sobre Naturalismo. Lisboa: Biblioteca ESTC.

Lessing, Dramaturgia de Hamburgo

Gotthold Ephraim Lessing (1729|1781) escreveu, entre 1767 e 1768, um conjunto de textos críticos sobre os espectáculos levados à cena no recém inaugurado Teatro Nacional de Hamburgo. Estas reflexões, que ficaram conhecidas por Dramaturgia de Hamburgo, reflectem a necessidade de um teatro que respondesse ao movimento de emancipação da burguesia e sua moral, por oposição à cultura aristocrática dominante. Nunca deixando de criticar o modelo francês, nomeadamente Voltaire, Lessing esclarece os conceitos basilares da poética aristotélica, faz a apologia de Shakespeare e defende uma dramaturgia que espelhe a vida, sem cair num naturalismo desmedido, e que sirva ainda como forma de conhecimento.
 
 
«[sobre as personagens] Os nomes de príncipes e de heróis podem dar a uma peça pompa e majestade, mas em nada contribuem para a comoção. A infelicidade daqueles cuja situação está mais próxima de nós calará mais fundo na nossa alma; e, se nos apiedamos dos reis, fazêmo-lo porque os vemos como homens e não como reis. Se a sua posição social torna, muitas vezes, os seus reveses mais importantes, não os torna, por isso, mais interessantes. [...] Os nomes sagrados de amigo, pai, amante, esposo, filho, mãe, de homem, afinal, são os mais patéticos: os seus direitos jamais prescreverão. [...]
 
[o poeta não é um historiador] Se só queremos aceitar a possibilidade de algo poder acontecer, porque aconteceu de facto, que nos impede de tomar uma fábula inteiramente inventada por uma história que aconteceu de facto, da qual nunca ouvimos falar? Que nos torna uma história credível à primeira vista? Não é a verosimilhança? [...] Sem justificação, parte-se do princípio que é uma das funções do teatro conservar a memória dos grandes homens; para tal temos a história, não o teatro. No teatro não devemos aprender o que um ou outro indivíduo fez, mas antes o que cada ser humano, com um determinado carácter, fará em determinadas circunstâncias. A intenção da tragédia é bem mais filosófica do que a intenção da história; e é rebaixá-la se fizermos dela um mero panegírico de homens célebres, ou se fizermos até mau uso dela para alimentar o orgulho nacional. [...]
 
[as três unidades] Uma coisa é aceitar as regras, outra é observá-las de facto. O primeiro caso aplica-se aos franceses; o último parecem tê-lo apenas conseguido os antigos.
A unidade de acção foi a primeira regra dramática dos antigos; a unidade de tempo e a unidade de lugar foram apenas uma consequência daquela; dificilmente as teriam observado mais rigorosamente, se aquela não o exigisse necessariamente, se não se lhe tivesse vindo associar o coro. [...] A esta limitação se submeteram, pois, de boa fé; mas com uma flexibilidade, com uma inteligência, que sete em cada nove vezes ganharam muito mais com isso do que perderam. Pois aproveitaram esta imposição para simplificar de tal modo a acção, para eliminar tão cuidadosamente todo o supérfluo  que esta, reduzida aos seus elementos essenciais, não era mais do que um ideal da mesma acção, que se constituía assim da forma mais feliz, que exigia o mínimo aditamento de circunstâncias de tempo e de lugar.
Os franceses, pelo contrário, que não adquiriram o gosto pela unidade de acção e que, antes de conhecerem a simplicidade grega, já estavam mal-acostumados pelas intrigas desenfreadas das peças espanhola, não consideraram as unidades de tempo e de lugar como consequências daquela unidade, mas como requisitos indispensáveis à noção de uma acção, requisitos esses que teriam de adaptar às suas acções mais faustosas e mais complicadas, com a severidade apenas exigida pelo uso do coro, do qual tinham prescindido totalmente. [...] Que celeuma não levantaram por causa da regularidade que facilitaram infinitamente para si próprios! [...]   
 
[sobre Shakespeare] Censura-se [...] que as suas peças não seguem um plano ou, se o fazem, é um plano muito imperfeito, irregular e mal elaborado; que nelas, o cómico e o trágico se misturam da forma mais insólita e que, muitas vezes, a mesma personagem que nos fez vir as lágrimas aos olhos com a sua linguagem comovente e natural, poucos momentos depois, com uma reviravolta singular ou uma expressão barroca dos seus sentimentos, em que nada induz ao riso, nos causa uma tal frieza que, em seguida, lhe é difícil levar-nos a recuperar a disposição de espírito com que nos quer ver. Censura-se isto e não se pensa que as suas peças são, por isso mesmo, reproduções naturais da vida humana. [...]»
 
 
Fonte: Lessing, Gotthold E. (2005) Dramaturgia de Hamburgo, Selecção antológica. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Plutarco, sobre o Amor

Plutarco, filósofo e historiador grego que viveu no século I entre Atenas e Roma, polemiza com um grupo de amigos em torno das relações entre amor e prazer, as preferências entre homens e mulheres para o amor e para a amizade e sobre o casamento. Em "Erotika - Diálogo sobre o amor", encontramos entre os interlocutores posições antagónicas que nos permitem conhecer melhor a vida quotidiana no Mundo Antigo.
 
 
«[...] PROTÓGENES - Se considerarmos a reprodução da espécie humana, teremos sem dúvida alguma o direito de achar o casamento necessário e, sob este pretexto, têm os legisladores muita razão de o honrar diante da multidão. Mas ponham-se de sobreaviso contra a possibilidade de se encontrar a mínima sombra de um verdadeiro amor no gineceu! [...] O amor, com efeito, quando é inspirado por uma rapaz jovem, inteligente, conduz à virtude pelo caminho da amizade. Enquanto que o desejo do homem pela mulher, no melhor dos casos, só leva ao prazer do corpo, a um gozo que só dura alguns instantes. [...] Sólon [legislador e poeta grego, séc. VII/VI a.C.] pensava a mesma coisa. Aos escravos, havia proscrito a pederastia, a entrada nos ginásios, sem se preocupar em interditar-lhes a união com mulheres. "Porque, enquanto a amizade é nobre, é um sentimento elevado, os prazeres do corpo são vulgares e indignos de um homem livre, e não é, pois, concebível que um escravo possa amar rapazes visto só os procurar para fazer sexo tal como se procuram as mulheres." [...]
 
DAFNEU - Se o amor não for abafado por uma união tão contranatural como a homossexualidade, a união de um homem e de uma mulher - esta sim, natural - só pode conduzir ao amor, ao menos pela graça que o acompanha. [...] Finalmente, e para sermos totalmente honestos, Protógenes, devíamos admitir que o amor dos rapazes e o amor das mulheres é a mesma e única paixão. [...]
 
PLUTARCO -Nos dois sexos, as razões que fazem nascer o amor são as mesmas. [...] Um belo corpo é sempre a expressão de uma bela alma.
 
E que preferes tu, rapazes ou raparigas?
Quando veja a beleza, sinto-me bissexual!
 
Podemos ficar um pouco surpreendidos com esta resposta, mas porque é que quando escolhe os seus amores, um homem honesto, se decidiria mais por um sexo que pela beleza? [...] Porque haveria o amador de beleza humana de fazer uma diferença entre os dois sexos, como se distinguisse o vestuário feminino do dos homens? [...]
O desejo furioso, quer seja provocado por uma mulher ou por um rapaz, esta em oposição ao amor.
É absurdo, por outro lado, dizer que a mulher não pode participar no Bem e no Belo. [...] E queriam-nos meter pelos olhos adentro que a sua natureza, maravilhosa e irrepreensível a todos os níveis de respeito, seria incompatível com a amizade? [...]
Só conhecem a "fusão total" os esposos amorosos. Os outros amores parecem-se com esses encontros, com esses toques, com essas combinações de átomos acompanhados de choques e seguidos das separações brutais de que fala Epicuro. Tais uniões não conseguem nunca essa unidade perfeita e completa do amor conjugal que, de um modo exclusivo, faz experimentar prazeres duradoiros. Que luz, que harmonia num casamento de amor! [...]
Muitas vezes censuramos e zombamos dos pederastas devido à sua inconstância. [...] Todavia, aqueles que amam verdadeiramente, não merecem esta censura, e Eurípides era comovente quando dizia, cobrindo de beijos e carícias as faces de Agatão, que já se cobriam de barba:  A beleza goza também dum belo Outono. [...]»
 
 
Fonte: Plutarco. (2000) Erotika, Diálogo sobre o amor. Lisboa: Edições Fim de Século.

Barthes, Representações teatrais na Grécia Antiga

Dada a nossa laicidade, dificilmente podemos compreender a importância que o Teatro teve na Grécia Antiga, dado que era uma manifestação simultaneamente de cariz religioso e cívico. Mas, ainda que nos separem do primeiro concurso ateniense de tragédia 26 séculos, só temos a ganhar se nos debruçarmos sobre os primórdios de um género que acompanhou o triunfo da democracia e a hegemonia de Atenas na Grécia Clássica (século V a.C).
«[...] Sabe-se que as representações teatrais só podiam ter lugar três vezes por ano, por ocasião das festas em honra de Dioniso. Havia por ordem de importância: as Grandes Dionísias, as Leneias, as Dionísias Rurais. [...]
Para todas estas festas, o teatro (que é, à letra, o lugar donde se vê) foi edificado num terreno dedicado a Dioniso. A consagração do local teatral implicava a consagração de tudo o que lá se passava: os espectadores usavam a coroa religiosa, os executantes eram sagrados e, inversamente, o delito tornava-se sacrilégio. [...]
O teatro grego foi um teatro legalmente oferecido aos pobres pelos ricos. A coregia era uma liturgia, isto é, uma obrigação oficialmente imposta aos cidadãos ricos pelo Estado: o corego devia mandar instruir e equipar um coro. [...] Os encargos financeiros eram muito pesados: o corego tinha de alugar a sala de ensaios, pagar o equipamento, fornecer as bebidas para os executantes, encarregar-se do salário diário dos artistas. [...]
Em princípio, a entrada no teatro era gratuita para todos os cidadãos, mas como por causa disso havia uma afluência muito grande, estabeleceu-se primeiro um direito de entrada de dois óbolos por cada dia de espectáculo (um terço do salário diário de um operário não qualificado). Este direito, pouco democrático, já que lesava os pobres, foi rapidamente abolido e substituído por uma subvenção do Estado aos cidadãos pobres. Esta subvenção de dois óbolos por cabeça (diobolia) foi decidida cerca de 410 anos a.C. por Cleofonte e recebeu o nome de theoricon. [...]
O mecanismo dos concursos dramáticos era complexo, porque os Gregos eram muito exigentes acerca da sinceridade das suas competições. O arconte, como vimos, designava os coregos; fixava também a lista de poetas admitidos a concorrer. [...] Havia três concorrentes para a tragédia (cada um apresentava uma tetralogia) e três (mais tarde cinco) para a comédia. [...] O julgamento, que se seguia à festa, era confiado a um júri de cidadãos, designado por sorteio (é preciso não esquecer que para os Gregos a sorte era um sinal dos deuses). [...]
É difícil imaginar instituições mais fortes, laços mais estreitos entre uma sociedade e o seu espectáculo. E como esta sociedade era democrática precisamente no momento em que a arte do espectáculo atingiu o seu auge, de bom grado se fez do teatro grego o próprio modelo do teatro popular. No entanto, é preciso recordar que, por admirável que tenha sido, a democracia ateniense não correspondia nem às condições nem às exigências de uma democracia moderna. Já o dissemos, tratava-se de uma democracia aristocrática: ignorava os metecos e os escravos, só considerava quarenta mil cidadãos dentre os quatrocentos mil habitantes da Ática. [...]»
Fonte: Barthes, Roland. (2009) O óbvio e o obtuso. Lisboa: Edições 70.

Laclos, Libertinagem no séc. XVIII (Ligações Perigosas)

A propósito das recentes encenações da peça "Quarteto" de Heiner Muller, que tem como ponto de partida o subversivo romance epistolar de Choderlos de Laclos (1741-1803) "Ligações Perigosas" (1782), pareceu-me pertinente deixar aqui alguma informação sobre a abordagem à Libertinagem no século XVIII francês. É neste século que o termo libertino adquire o significado de devasso que ainda hoje lhe atribuímos. A Libertinagem, difundida entre os jovens aristocratas, podia ainda no século anterior ser entendida como instauração de uma ordem livre fundada na Razão. O livre-pensador, não se deixando subjugar pelas normas sociais vigentes, nomeadamente, os dogmas religiosos, atribui o destino do homem ao próprio homem e enaltece o homem natural. O prazer é conforme à natura, nenhum Deus, a existir um, o condenaria, diria Bocage. 
É Crébillon Filho que define o libertino como aquele que se rege pelo autodomínio para subjugar o outro em prol do seu próprio prazer, fazendo alarido do seu triunfo; a esta designação correspondem o visconde de Valmont e a marquesa de  Merteuil de Ligações Perigosas. Trata-se de um jogo de poder, de domínio sobre o outro, para preencher uma existência vazia e privilegiada.
Mas pretendia Laclos fazer a apologia da libertinagem ou denunciar os seus efeitos nefastos?

Carta nº 96: do visconde de Valmont à marquesa de Merteuil

«Aposto que, após a vossa aventura, esperais diariamente os meus cumprimentos e os meus elogios; não tenho sequer dúvida de que o meu longo silêncio vos  terá provocado uma certa zanga; mas que quereis?, pensei sempre que, quando só havia louvores a tecer a uma mulher, podíamos ter confiança nela e ocuparmo-nos de outro assunto. No entanto, agradeço-vos por minha conta e felicito-vos pela vossa. Posso mesmo, para vos tornar perfeitamente feliz, convir que por esta vez vós tendes ultrapassado a minha expectativa. Em seguida, vejamos se, pelo meu lado, terei preenchido a vossa em parte.
Não é de Mme. de Tourvel que vos quero falar; a marcha demasiado lenta desse assunto desagrada-vos; vós só apreciais os casos arrumados. As cenas moderadas aborrecem-vos e eu, pelo meu lado, nunca tinha saboreado o prazer que experimento nestas pretensas lentidões.
Sim, gosto de ver, de considerar essa mulher prudente, comprometida, sem se ter disso apercebido, num caminho que não permite o regresso e cujo declive rápido e perigoso a arrasta, sem ela o desejar, forçando-a a seguir-me. Assustada com o perigo que corre, gostaria de parar mas não pode deter-se. [...] As preces fervorosas, as súplicas humildes, tudo o que os mortais no seu temor oferecem à Divindade, sou eu que os recebo dela. Quereis então que eu, surdo aos seus pedidos e destruindo eu próprio o culto que ela me presta, me empregue em precipitar o poder que ela invoca para a sustentar? Ah, deixai-me pelo menos o tempo de observar esses emocionantes combates entre o amor e a virtude.
Como! Esse mesmo espectáculo que vos faz correr ao teatro, que ali aplaudis com vigor, pensais que é menos emocionante visto na realidade! Esses sentimentos de uma alma pura e terna que teme a felicidade que deseja e não cessa de se defender mesmo quando deixa de resistir, vós os escutais com entusiasmo: eis os deliciosos prazeres que esta mulher celeste me oferece todos os dias; e vós acusais-me de lhes saborear os encantos! Ah! Chegará demasiado depressa o tempo em que, degradada pela sua própria queda, ela não será para mim mais do que uma mulher vulgar.
Mas eu esqueço, falando-vos dela, que o não queria fazer. Não sei que poder a ela me liga, a ela me conduz, incessantemente, mesmo quando a ultrajo. Afastemos a sua perigosa ideia; que eu regresse a mim próprio para tratar de um assunto mais alegre. Trata-se da vossa pupila [Volanges], agora tornada a minha, e espero que neste caso vós me ireis reconhecer. [...]
Depois de ter acalmado os seus primeiros receios, como eu não tinha ido ali para conversar, arrisquei algumas liberdades. Decerto não lhe tinham ensinado bem, no convento, a quantos perigos diversos está exposta a tímida inocência, e tudo o que ela tem a guardar para não ser surpreendida, porque, pondo toda a sua atenção e as suas forças em se defender de um beijo que não passava de um falso ataque, todo o resto era deixado sem defesa; como não aproveitar! Mudei, pois, o meu traçado e tomei imediatamente posição. Pensei então estarmos perdidos os dois: a jovem, apavorada, quis gritar de boa-fé; felizmente, a voz extinguiu-se-lhe nas lágrimas. Também tinha tentado puxar o cordão da campainha, mas aí a minha habilidade tinha-a retido a tempo. [...]
Retirei-me apenas ao romper do dia, quebrado de sono e de fadiga. No entanto sacrifiquei um e a outra ao desejo de me encontrar esta manhã ao almoço: amo apaixonadamente os aspectos da manhã. Não fazeis ideia deste. Era um embaraço no porte, uma dificuldade no andar, olhos sempre baixos e olheiras tão fundas! O rosto tão redondo estava alongado! Nada mais agradável. E pela primeira vez a mãe, alarmada com aquela alteração extrema, manifestava-lhe um interesse bastante terno! E a presidente [Tourvel], também, afadigava-se em torno dela! Os cuidados desta são apenas um empréstimo; virá um dia em que eles lhe poderão ser devolvidos e esse dia não está longe. Adeus, minha bela amiga.»


Fonte: AA.VV. (1972) A arte de amar no século XVIII. Porto: Editorial Inova.
Foto: Manuel Taboada (2014), Siena, Santa Maria Della Scala, Sculpture by Tito.