Nietzsche, A Origem da Tragédia

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844|1900), profundo conhecedor da cultura grega, escreve "A Origem da Tragédia e o Espírito da Música" em 1871, onde defende que a Arte é «a missão mais elevada e a actividade essencialmente metafísica da vida humana».
Ainda que mais tarde, nomeadamente num posfácio de 1886, tenha considerado este livro da sua juventude «mal escrito, difícil, pouco cuidadoso com o rigor lógico» e na sua obra abundem as contradições e a ambiguidade, algumas ideias aqui apresentadas pela 1ª vez foram depois desenvolvidas com maior profundidade e alcance, permanecendo basilares no seu pensamento: a compreensão do fenómeno dionisíaco e a rejeição do socratismo.
Nietzsche rejeita o Iluminismo, que crê no poder da razão e no progresso, aceitando a vida como problemática e causadora de sofrimento. A Arte, e particularmente a Tragédia Ática (Ésquilo e Sófocles, pois com Eurípides o método racionalista imiscui-se na tragédia), apresenta-se como símbolo das duas forças fundamentais do ser: o Dionisíaco (Diónisos, deus do vinho) e o Apolíneo (Apolo, deus profético, da sabedoria iluminada pelo sentido da medida, da reflexão), forças opostas que se combatem mutuamente, mas interdependentes. A Tragédia Antiga é a representação apolínea do dionisíaco.


«[...] Debaixo do encantamento dionisíaco, não é apenas a aliança do homem com o homem que se renova, mas é também a natureza alienada, hostil ou subjugada, que celebra de novo a sua festa de reconciliação com o seu filho pródigo, o homem. [...]
Todo o artista é um "imitador", quer se trate do artista apolíneo do sonho, quer se trate do artista dionisíaco da embriaguês, quer se trate ainda, como é o caso da tragédia grega, de um artista da embriaguês e do sonho, ao mesmo tempo. [...]
Para poderem viver os Gregos, impelidos pela mais imperiosa das necessidades, criaram os seus deuses. [...]

Receio que, com a nossa veneração actual por tudo o que é natural e real, cheguemos aos antípodas do idealismo, isto é, à terra dos museus de figuras de cena.[...]
Era a natureza, ainda não manchada por forma alguma de conhecimento, ainda não rasgada por qualquer forma de civilização, o que o grego via na imagem do sátiro. [...]

Mas é preciso ter sempre presente no espírito que o público da tragédia grega se encontrava no coro da orquestra, de que não havia oposição alguma entre o público e o coro, porquanto, em união, todos formavam um grande coro sublime dos sátiros, dançando e cantando, ou homens que se faziam representar por estes sátiros.
Podemos então considerar que o coro, na forma primitiva da tragédia original, era uma espécie de espelho em que o homem dionisíaco se reflectia a si próprio - fenómeno que se nos torna muito claro, por analogia com o actor verdadeiramente dotado que vê pairar diante dos seus olhos, como se estivesse quase a tocá-la, a personagem que está a representar. [...]

O encantamento é a condição prévia de toda a arte dramática. [...]
Até Eurípedes nunca deixou Diónisos de ser o herói trágico e que todas as personagens ilustres do teatro grego, Prometeu, Édipo, etc., não foram mais do que máscaras deste herói original - Diónisos. [...] Com ele [Eurípides] o homem comum deixou os bancos dos espectadores e subiu ao palco, e o espelho que outrora reflectia só traços nobres e altivos passou a reproduzir escrupulosamente ecom minúcia mesmo até as disformidades da natureza. [...] A mediocridade burguesa, na qual Eurípedes punha todas as suas esperanças políticas, passou a ter voz, enquanto que até então só o semideus e o sátiro inebriado, criatura semi-humana, haviam determinado o carácter da linguagem. [...]

Sócrates, o herói dialéctico do drama platónico, assemelha-se ao herói euripediano que se vê obrigado a justificar os seus actos por argumentos e contra-argumentos e que, por isso mesmo, se arrisca a não ser capaz, muitas vezes, de suscitar a nossa compaixão trágica. [...]
O mito trágico só pode compreender-se como uma representação concreta da sabedoria dionisíaca, por processos artísticos apolíneos. [...]»


Fonte: Nietzsche. (2002) A Origem da Tragédia. Lisboa: Lisboa Editora.