Roselee Goldberg, A arte da performance

Em 1978, Roselee Goldberg procurou fazer a história da performance denotando a sua importância para a actividade artística no século XX. Necessidade e provocação foram os motores que despoletaram a atitude de artistas que não se reviam nos meios de expressão dominantes ou a eles não tinham acesso. 
Pela dificuldade em classificar em que consiste a performance ou o que define o performer, pareceu-me útil esta introdução presente em "A Arte da Performance, do Futurismo ao presente" de Roselee Goldberg. 


«A performance passou a ser reconhecida como meio de expressão artística independente na década de 1970. Nessa época, a arte conceptual - que privilegiava uma arte das ideias em detrimento do produto, uma arte que não se destinasse a ser comprada ou vendida - estava no seu apogeu, e a performance, frequentemente uma demonstração ou execução dessas ideias, tornou-se assim a forma de arte mais visível deste período. [...]

Os manifestos da performance, desde os futuristas até aos nossos dias, representam a expressão de dissidentes que têm procurado outros meios de avaliar a experiência artística no quotidiano. A performance permite comunicar directamente com um grande público e escandalizar os espectadores, obrigando-os a reavaliar os seus conceitos de arte e a sua relação com a cultura. [...] A obra pode ter a forma de espectáculo a solo ou em grupo, com iluminação, música ou elementos visuais criados pelo próprio performer ou em colaboração com outros artistas, e ser apresentada em lugares como uma galeria de arte, um museu, um "espaço alternativo", um teatro, um bar, um café ou uma esquina. Ao contrário do que se verifica na tradição teatral, o performer é o artista, quase nunca uma personagem, como acontece com os actores, e o conteúdo raramente segue um enredo ou uma narrativa nos moldes tradicionais. A performance pode também consistir numa série de gestos íntimos ou numa manifestação teatral com elementos visuais em grande escala e durar apenas alguns minutos ou várias horas; pode ser apresentada uma única vez ou repetida diversas vezes e seguir ou não um guião; tanto pode ser fruto de improvisação espontânea como de longos meses de ensaios. [...]

A história da performance no século XX é a história de um meio de expressão maleável e indeterminado, com infinitas variáveis, praticado por artistas insatisfeitos com as limitações das formas mais estabelecidas e decididos a pôr a sua arte em contacto directo com o público. Por esse motivo sempre teve uma base anárquica. Devido à sua natureza, a performance dificulta uma definição fácil ou exacta que transcenda a simples afirmação de que se trata de uma arte feita ao vivo pelos artistas. Qualquer definição mais rígida negaria de imediato a própria possibilidade da performance, pois os seus praticantes usam livremente quaisquer disciplinas e meios como material - literatura, poesia, teatro, música, dança, arquitectura e pintura, assim como vídeo, película, slides e narrações -, utilizando-os nas mais diversas combinações. De facto, nenhuma outra forma de expressão artística tem um programa tão ilimitado, uma vez que cada performer cria a sua própria definição através dos processos e modos de execução adoptados. [...]»


Fonte: Goldberg, Roselee. (2012) A Arte da Performance, do Futurismo ao presente. Lisboa: Orfeu Negro.

Piscator, O Teatro Épico

Erwin Piscator (1893-1966), actor e encenador alemão, surge como um dos nomes incontornáveis na concretização de um Teatro Político que promove a reflexão em torno de temas da actualidade (Zeittheater). Recorreu, para tal, à montagem de quadros, aprendida no Cabaret alemão, mas também à projecção de imagens e filmes, às canções e legendas (à semelhança de Brecht). Era seu propósito, como afirma Eugénia Vasques, «lutar por um teatro que tivesse uma imediata e directa influência na transformação da vida, e que fomentasse a informação e a tomada de consciência dos “porquês” e dos “comos” da realidade de todos os dias.»


«O século XX ficará na história do teatro como o quadro temporal por excelência das grandes revoluções técnicas e estéticas no palco teatral do Ocidente. Com efeito, é neste século que o palco se transforma “no meio, por excelência, para a discussão intelectual, para a análise psicológica, para o conflito social e para a experimentação nas artes teatrais e dramáticas – muito mais, diga-se, do que em outros períodos [históricos] durante os quais o teatro “legitimado” não encontrou qualquer competição noutros domínios do divertimento.” (Gassner, p. 6; tradução minha).

O actor alemão (e sobretudo encenador) Erwin Piscator (1893-1966), um dos grande renovadores da estética teatral na Alemanha, começou a desenvolver uma actividade sistemática no teatro imediatamente depois da Guerra Mundial I. [...] Os seus espectáculos tornaram-se “Manifestos” com o objectivo de “fazer política” e não “divertimento” para a “classe burguesa” que ele tinha, aliás, de ajudar a combater! [...]

Piscator queixava-se do desfasamento entre o teatro político que se desenvolvia no palco prático do tempo e a dramaturgia sua contemporânea. A revolução Expressionista no teatro tinha sido quase exclusivamente de ordem estética e Piscator encontrava-se a travar uma batalha sociológica ao pretender criar um teatro que reflectisse as preocupações e lutas do proletariado. [...] Em 1927, sob a directa responsabilidade do seu colaborador Felix Gasbarra, Piscator fundou o seu primeiro “colectivo dramatúrgico” do qual Brecht seria, aliás, um dos membros activos.

As inovações propostas por Piscator tinham objectivos mais didácticos e dramatúrgicos do que objectivos meramente tecnológicos e foram sistematicamente desenvolvidas ao longo das suas dezanove primeiras encenações. As mais relevantes destas inovações foram a introdução de um narrador-comentador, a utilização sistemática de projecções simples e múltiplas, de filmes e documentários e do filme de banda desenhada, a instalação de cenas simultâneas e de cenas que decorrem ao longo do tempo, a experimentação pioneira de um teatro de luz e a introdução muito experimental dos tapetes rolantes, elevadores e dispositivos cenográficos (como Meyerhold) que eram a própria cenografia. [...]

Depois de regressar à Alemanha Piscator, haveria de afirmar inesperadamente:

Não fui eu que inventei o meu estilo de teatro, mas quem o criou foi a terrível experiência da guerra, o desespero da inflação e as lutas sociais do pós-guerra. Seja teatro político ou teatro épico, nas minhas mãos e quase contra a minha vontade, todas as peças e produções se tornaram confissões. Se fosse necessário encontrar um nome para isto, o mais apropriado seria o de “teatro confessional”. (cit. em Patterson p. 148; tradução minha) [...]»


Fonte: Vasques, Eugénia (2007) Piscator e o conceito de "Teatro Épico". Amadora: ESTC.

Brecht, A nova técnica da arte de representar

Bertolt Brecht (1898-1956) procurou defender uma ideia de teatro que desse lugar à análise e à crítica em prol de uma mudança social. Para tal, era necessário fazer um outro teatro, um teatro que não procurasse a ilusão e a empatia do público com o destino das suas personagens. Um teatro "não-aristotélico" que, ao invés de conduzir à catarse apaziguadora, despoletasse a reflexão que conduz à acção transformadora. 
Num teatro assim, o actor não poderia construir personagens com base na identificação. Era necessário romper com o "teatro ilusionista" que o recurso à quarta parede permitia, dirigir-se ao público mostrando personagens cujas opções podem ser discutidas em busca de alternativas. Era necessário um actor interventivo que, através do processo de distanciação (ou estranhamento), tornasse o hábito matéria de pesquisa e modificação.


«Tentarei a seguir descrever uma técnica de representação utilizada em alguns teatros para distanciar do espectador os acontecimentos apresentados. O objectivo desta técnica do efeito de distanciação era conferir ao espectador uma atitude analítica e crítica perante o desenrolar dos acontecimentos. Os meios para tal empregados eram de natureza artística.

Para a utilização deste efeito segundo o objectivo já mencionado, é condição necessária que no palco e na sala de espectáculos não se produza qualquer atmosfera mágica e que não surja também nenhum "campo de hipnose". [...] Não se aspirava, em suma, a pôr o público em transe e a dar-lhe a ilusão de estar a assistir a um acontecimento natural, não ensaiado. [...] É condição necessária para se produzir o efeito de distanciação que, em tudo o que o actor mostre ao público, seja nítido o gesto de mostrar. A noção de uma quarta parede que separa ficticiamente o palco do público e da qual provém a ilusão de o palco existir, na realidade, sem o público, tem de ser naturalmente rejeitada, o que, em princípio, permite aos actores voltarem-se directamente para o público. [...] As minhas palavras iniciais, ao tratar desta questão, desde logo revelam que a técnica que causa o efeito de distanciação é diametralmente oposta à que visa a criação da empatia. A técnica de distanciação impede o actor de produzir o efeito de empatia.

No entanto, o actor, ao esforçar-se para reproduzir determinadas personagens e para revelar o seu comportamento, não necessita de renunciar completamente ao recurso da empatia. Servir-se-á deste recurso na medida em que qualquer pessoa sem dotes nem pretensões teatrais o utilizaria para representar outra pessoa, ou seja, para mostrar o seu comportamento. [...] Consumá-lo-á, porém - ao invés do que é hábito no teatro vulgar, em que tal acto é consumado durante a própria representação e com o objectivo de levar o espectador a um acto idêntico -, apenas numa fase prévia, em qualquer momento da preparação do seu papel, nos ensaios. [...]

O actor terá de ler o seu papel assumindo uma atitude de surpresa e, simultaneamente, de contestação. Tem de pesar prós e contras e de apreender, na sua singularidade, não só a motivação dos acontecimentos sobre que versa a sua leitura, mas também o comportamento da personagem que corresponde ao seu papel e do qual vai tomando conhecimento. Não deverá considerar este como pré-estabelecido, como "algo para que não havia, de forma alguma, outra alternativa", "que seria de esperar num carácter como o desta pessoa". Antes de decorar as palavra, terá de decorar qual a razão da sua surpresa e em que momento contestou. Não deve excluir da configuração do seu papel qualquer destes dados. [...]

Visto que não se identifica com a personagem que representa, é-lhe possível escolher uma determinada perspectiva em relação a esta, revelar a sua opinião a respeito dela, incitar o espectador - também, por sua vez, não solicitado a qualquer identificação - a criticá-la. A perspectiva que adopta é crítico-social. [...]

No que respeita ao aspecto emocional, devo dizer que as experiências do efeito de distanciação realizadas nos espectáculos de teatro épico, na Alemanha, levaram-nos a verificar que também se suscitam emoções de espécie diversa das do teatro corrente. A atitude do espectador não será menos estética por ser crítica. O efeito de distanciação, quando descrito, resulta muito menos natural do que quando realizado na prática. [...]»


Fonte: Brecht, Bertolt. (1957) Estudos sobre teatro. Lisboa: Portugália Editora. 

Raymond Bayer, A estética aristotélica

Na obra História da Estética, Raymond Bayer elabora um percurso pela reflexão sobre a arte e o belo desde a Antiguidade até ao século XX, dando-nos a conhecer a evolução de uma área de conhecimento que só no séc. XVIII ganhou o termo que hoje a define: Estética.
Pareceram-me de particular interesse os seus esclarecimentos sobre o terror e a piedade, assim como a clarificação do termo catarse como objectivo final da tragédia.


«A tragédia segundo Aristóteles
Na parte da Poética em que estuda a tragédia, Aristóteles diferencia-a primeiro da epopeia. Depois distingue seis partes constitutivas da tragédia: o espectáculo, o canto, a elocução, os caracteres, o pensamento e a fábula. [...] 
Aristóteles chega a esta definição: "A tragédia é a imitação duma acção completa e acabada que tem uma dimensão determinada." É pois um todo que tem "um começo, um meio e um fim". A acção deve ser séria, completa, com um justo desenvolvimento valorizado por todos os atractivos que, segundo a sua espécie, se distribuem sob a forma de drama e não de narrativa, e conseguem, excitando a piedade ou o terror, purificar em nós ou purgar estes dois sentimentos. [...]
Aristóteles não fez mais do que extrair a sua teoria dos grandes trágicos gregos e em particular de Sófocles. Ora estes dois sentimentos existiam neles; havia piedade perante o sofrimento dos nossos semelhantes: era uma simpatia quase animal e de que aliás os animais são capazes. Para que este co-sofrimento exista, são precisos certos caracteres. Se se trata dum indivíduo absolutamente perverso, não há sofrimento trágico. [...] As personagens não devem portanto ser absolutamente perversas. Mas também não devem ser absolutamente inocentes, porque o nosso sentimento de justiça se insurgiria e não o suportaríamos. É preciso, pois, diz Aristóteles, que a personagem não seja nem inocente, nem inteiramente culpada: um ser semelhante ao que nós somos e com quem possamos simpatizar. Quando esse ser sofrer, não experimentaremos o sentimento de injustiça absoluta. Todas as personagens  da tragédia grega, diz Aristóteles, entram nesta definição. Achamos por vezes que o castigo não é proporcionado, como em Édipo, mas é em parte merecido. 
O terror difere da piedade. Não é exactamente um temor disfarçado. Aristóteles pensa que a piedade é reservada às personagens; o que nos inspira o terror são as catástrofes que vemos desenrolarem-se e que são causadas pela fatalidade ou anakê. O terror manifesta-se perante os desígnios inelutáveis do Destino. O terrível é sempre causado pelo destino. Logo, a piedade e o terror são não só diferentes psicologicamente, mas são mesmo inversos: quando temos medo, não temos piedade, e vice-versa; são portanto dois sentimentos exclusivos quando estão em primeiro plano. O terror e o temor são de natureza egoísta; a piedade é altruísta. [...]
O verdadeiro fim da tragédia é a catharsis, que tem dois sentidos possíveis. [...] Aristóteles foi buscar este conceito a Platão, mas dá-lhe um sentido novo, empregando-o no sentido fisiológico e médico. Para Platão, não é purgar, é desenvolver as paixões empregando-as; é por isso que Platão condena a tragédia que enfraquece a alma, o que é talvez fisiologicamente mais justo do que a concepção de Aristóteles. Aristóteles quis dizer que não purificamos as paixões, antes as eliminamos. Pelo seu desenvolvimento, elas eliminam-se.
Contrariamente a Platão, que vê na tragédia como na música um exercício perigoso das paixões, e portanto será levado a expulsar os artistas da sua República, Aristóteles, pela sua catártica, vendo nas artes, e mais especialmente na tragédia, uma medicação, um remédio contra o exagero e o excesso, a elas volta constantemente como a uma das sabedorias da sua filosofia. As artes são, à sua maneira, moderadoras; são obreiras do justo meio. As paixões são emoções violentas, mas já reduzidas sob a condição duma catártica.»


Fonte: Bayer, Raymond. (1993) História da Estética. Lisboa: Editorial Estampa.

Italo Calvino, Porquê ler os clássicos?

Em Porquê ler os clássicos?, Italo Calvino (1923-1985) analisa alguns dos «seus» clássicos, de Homero a Cesare Pavese passando por Flaubert, Tolstoi ou Hemingway, procurando definir o que pode ou deve ser considerado um clássico e para que servirá o seu conhecimento, na juventude ou em idade mais tardia. Apesar de nos emprestar as suas leituras, o escritor não deixa de recomendar a leitura directa dos originais evitando a interpretação alheia.

«Não se lêem os clássicos por dever ou por respeito, mas só por amor. Salvo na escola: a escola deve dar-nos a conhecer bem ou mal um certo número de clássicos entre os quais poderemos depois reconhecer os nossos clássicos. A escola destina-se a dar-nos instrumentos para exercermos uma opção; mas as opções que contam são as que se verificam fora e depois de todas as escolas.» (Calvino, 1994: 10)

O importante é retermos que estas são obras que «servem para compreender quem somos e aonde chegámos», como observa no final do artigo de onde retirámos este excerto. E se não servirem para nada? E têm de servir para alguma coisa além do prazer de descoberta do leitor?


«Porquê ler os clássicos?

1. Os clássicos são os livros de que se costuma ouvir dizer: «Estou a reler...» e nunca «Estou a ler...». [...]
2. Chamam-se clássicos os livros que constituem uma riqueza para quem os leu e amou; mas constituem uma riqueza nada menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas condições melhores para os saborear. [...]
3. Os clássicos são livros que exercem uma influência especial, tanto quando se impõem como inesquecíveis, como quando se ocultam nas pregas da memória mimetizando-se de inconsciente colectivo ou individual. [...]
4. De um clássico toda a releitura é uma leitura de descoberta igual à primeira.
5. De um clássico toda a primeira leitura é na realidade uma releitura. [...]
6. Um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer. [...]
7. Os clássicos são os livros que nos chegam trazendo em si a marca das leituras que antecederam a nossa e atrás de si a marca que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes). [...]
8. Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma vaga de discursos críticos sobre si, mas que continuamente se livra deles. [...]
9. Os clássicos são livros que quanto mais se julga conhecê-los por ouvir falar, mais se descobrem como novos, inesperados e inéditos ao lê-los de facto. [...]
10. Chama-se clássico um livro que se configura como equivalente do universo, tal como os antigos talismãs. [...]
11. O nosso clássico é o que não pode ser-nos indiferente e que nos serve para nos definirmos a nós mesmos em relação e se calhar até em contraste com ele. [...]
12. Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu primeiro os outros e depois lê esse, reconhece logo o seu lugar na genealogia. [...]
13. É clássico o que tiver tendência para relegar a actualidade para a categoria de ruído de fundo, mas ao mesmo tempo não puder passar sem esse ruído de fundo.
14. É clássico o que persistir como ruído de fundo mesmo onde dominar a actualidade mais incompatível. [...]»


Fonte: Calvino, Italo. (1994) Porquê ler os clássicos? Lisboa: Teorema.

  

Jean-Pierre Ryngaert, Léxico da intriga na dramaturgia clássica

Sendo verdade que a especificidade do texto dramático se alterou radicalmente no século XX, ao ponto de ser difícil caracterizá-lo, este léxico da intriga proposto por J.-P. Ryngaert constitui uma ferramenta útil quando se trabalha com dramaturgia clássica.


«LÉXICO DA INTRIGA
- De acordo com os princípios da dramaturgia clássica:

Exposição: Momento em que o dramaturgo fornece as informações necessárias para o entendimento da acção, apresenta as personagens e entra no assunto.
Para os clássicos, a exposição deve «instruir o espectador sobre o assunto e as circunstâncias principais, o lugar da cena e mesmo a hora em que acção principia, nome, estado, carácter e interesses das personagens principais».

: «As causas e os desígnios de uma acção participam na exposição do assunto e ocupam a abertura; não podem deixar de ser seguidos por obstáculos e contrariedades e por consequência formar um nó no centro ou no meio da intriga da peça, e a resolução deste nó é o desfecho ou fim da acção. (Abade Nadal, Observations sur la tragédie ancienne et moderne, citado por Jacques Scherer).

Peripécias: No singular, para Aristóteles, a peripécia é a inversão da situação do herói que conduz ao desenlace, por exemplo, a passagem da felicidade à infelicidade no desenlace trágico.
No plural, as peripécias são «golpes de teatro» ou «mudanças de sorte» que alteram subitamente a situação, surpreendem pela inversão da acção. Sublinham que no interior de uma intriga a situação do herói não pode ser igual.

Desenlace: «Uma inversão das últimas tendências do espectáculo, a derradeira peripécia, e um regresso de acontecimentos que alteram todas as aparências das intrigas.» (Abade d'Aubignac, Pratique du théâtre).
«O desenlace de uma peça de teatro compreende a eliminação do último obstáculo ou da derradeira peripécia e os acontecimentos que daí podem resultar; estes acontecimentos são por vezes designados pelo termo catástrofe.» (Jacques Sherer, La Dramaturgie classique en France.) [...]»


Fonte: Ryngaert, Jean-Pierre. (1992) Introdução à análise do teatro. Porto: Edições Asa.

Abel Neves, O texto dramático

Abel Neves, cuja voz interessa ouvir quando se fala de teatro, integrou a Comuna durante doze anos (1979-1991), onde também trabalhou como actor, e esteve ligado ao nascimento do Teatro da Serra de Montemuro (1995). São dezenas as peças que escreveu: Amadis, Terra, El Gringo, Lobo-Wolf, Inter-rail, Além as estrelas são a nossa casa, Supernova, Vulcão, entre outras. 
Poeta, romancista e dramaturgo, publica em 2002 Algures entre a resposta e a interrogação na Cotovia, livro que reúne vários ensaios em volta do teatro. Os excertos aqui publicados foram retirados de duas comunicações suas, a primeira data de 1998 no Fórum Nacional de Teatro Amador em Aveiro e a segunda de 2000 do Encontro Escola da Escrita e da Leitura na Associação Portuguesa de Escritores, presentes no  livro citado.

Numa entrevista de 2010, Abel Neves fala assim da escrita para teatro em Portugal:

«"Vale a pena estarmos entusiasmados com aquilo que fazemos", afirma. E é desse entusiasmo que sente falta quando se fala, "ou não se fala", do acto da escrita para teatro em Portugal. "Quase não há crítica, nem divulgação ou edição. Aqui parece que as instituições têm vergonha dos autores que existem", diz. E não se limita a criticar, tendo mesmo feito planos, orçamentados, de um centro de dramaturgia portuguesa. Todas as instituições a que o propôs (e foram muitas) chumbaram a ideia. "É preciso tornar o teatro vivo, dinamizar encontros, editar os textos. Não para que se fale deste ou daquele autor, mas das obras que vamos fazendo.", diz»


«No teatro, o texto tira os pecados do mundo? 

[...] Criado e sugerido pelo dramaturgo o texto não é, apesar disso, a lei do teatro. Será o início de uma aventura. E pode ficar eternamente esperando que alguém - actor, encenador - lhe encontre o interesse e muitas vezes, a maior parte das vezes, será necessário que esse alguém tenha um interesse primeiro que seja simpático com esse outro ainda oculto no texto. Depois haverá espectáculo. Neste caso o texto é o núcleo de um objecto criador, isto entendido como a coisa a partir da qual tudo vai estar em expansão e produzindo os elementos espectaculares e assim, no teatro, o texto será o que é, uma matéria-prima entre as matérias. Mas noutros casos, o texto não é primeiro. [...]


O texto para o teatro, uma natureza morta, digo.

[...] Os textos para o teatro estão mortos como argila. Ou como outra coisa qualquer que esteja morta. O que é um modo de lhes atribuir vida, se pensarmos que nada morre. O livro é um objecto morto, se o interrogarmos, a resposta será tão inesperada, que a nossa cabeça andará à roda, e pensaremos que há vida dentro dele. E a verdade é que há, um texto. Mas um texto, sendo parte fundamental de um livro, é obra a pedir constante ressurreição. Os leitores ocupam-se directamente dessa magia. No teatro, essa tarefa está quase por inteira no actor, e com ele somos levados para outros recantos da vida onde podemos experimentar, então, o prazer, ou desprazer, das coisas ideais.  Aí, sim - e os tais gregos sabiam-no bem - podemos reconhecer as venturas e desventuras do nosso mundo. Mas o texto para o teatro, esse texto que está nos livros e que é importado pela memória dos actores, o que é ele antes de ganhar a vitalidade do palco? Uma natureza morta, digo. [...]»


Fonte: Neves, Abel. ( 2002) Algures entre a resposta e a interrogação. Lisboa: Edições Cotovia.