Lessing, Dramaturgia de Hamburgo

Gotthold Ephraim Lessing (1729|1781) escreveu, entre 1767 e 1768, um conjunto de textos críticos sobre os espectáculos levados à cena no recém inaugurado Teatro Nacional de Hamburgo. Estas reflexões, que ficaram conhecidas por Dramaturgia de Hamburgo, reflectem a necessidade de um teatro que respondesse ao movimento de emancipação da burguesia e sua moral, por oposição à cultura aristocrática dominante. Nunca deixando de criticar o modelo francês, nomeadamente Voltaire, Lessing esclarece os conceitos basilares da poética aristotélica, faz a apologia de Shakespeare e defende uma dramaturgia que espelhe a vida, sem cair num naturalismo desmedido, e que sirva ainda como forma de conhecimento.
 
 
«[sobre as personagens] Os nomes de príncipes e de heróis podem dar a uma peça pompa e majestade, mas em nada contribuem para a comoção. A infelicidade daqueles cuja situação está mais próxima de nós calará mais fundo na nossa alma; e, se nos apiedamos dos reis, fazêmo-lo porque os vemos como homens e não como reis. Se a sua posição social torna, muitas vezes, os seus reveses mais importantes, não os torna, por isso, mais interessantes. [...] Os nomes sagrados de amigo, pai, amante, esposo, filho, mãe, de homem, afinal, são os mais patéticos: os seus direitos jamais prescreverão. [...]
 
[o poeta não é um historiador] Se só queremos aceitar a possibilidade de algo poder acontecer, porque aconteceu de facto, que nos impede de tomar uma fábula inteiramente inventada por uma história que aconteceu de facto, da qual nunca ouvimos falar? Que nos torna uma história credível à primeira vista? Não é a verosimilhança? [...] Sem justificação, parte-se do princípio que é uma das funções do teatro conservar a memória dos grandes homens; para tal temos a história, não o teatro. No teatro não devemos aprender o que um ou outro indivíduo fez, mas antes o que cada ser humano, com um determinado carácter, fará em determinadas circunstâncias. A intenção da tragédia é bem mais filosófica do que a intenção da história; e é rebaixá-la se fizermos dela um mero panegírico de homens célebres, ou se fizermos até mau uso dela para alimentar o orgulho nacional. [...]
 
[as três unidades] Uma coisa é aceitar as regras, outra é observá-las de facto. O primeiro caso aplica-se aos franceses; o último parecem tê-lo apenas conseguido os antigos.
A unidade de acção foi a primeira regra dramática dos antigos; a unidade de tempo e a unidade de lugar foram apenas uma consequência daquela; dificilmente as teriam observado mais rigorosamente, se aquela não o exigisse necessariamente, se não se lhe tivesse vindo associar o coro. [...] A esta limitação se submeteram, pois, de boa fé; mas com uma flexibilidade, com uma inteligência, que sete em cada nove vezes ganharam muito mais com isso do que perderam. Pois aproveitaram esta imposição para simplificar de tal modo a acção, para eliminar tão cuidadosamente todo o supérfluo  que esta, reduzida aos seus elementos essenciais, não era mais do que um ideal da mesma acção, que se constituía assim da forma mais feliz, que exigia o mínimo aditamento de circunstâncias de tempo e de lugar.
Os franceses, pelo contrário, que não adquiriram o gosto pela unidade de acção e que, antes de conhecerem a simplicidade grega, já estavam mal-acostumados pelas intrigas desenfreadas das peças espanhola, não consideraram as unidades de tempo e de lugar como consequências daquela unidade, mas como requisitos indispensáveis à noção de uma acção, requisitos esses que teriam de adaptar às suas acções mais faustosas e mais complicadas, com a severidade apenas exigida pelo uso do coro, do qual tinham prescindido totalmente. [...] Que celeuma não levantaram por causa da regularidade que facilitaram infinitamente para si próprios! [...]   
 
[sobre Shakespeare] Censura-se [...] que as suas peças não seguem um plano ou, se o fazem, é um plano muito imperfeito, irregular e mal elaborado; que nelas, o cómico e o trágico se misturam da forma mais insólita e que, muitas vezes, a mesma personagem que nos fez vir as lágrimas aos olhos com a sua linguagem comovente e natural, poucos momentos depois, com uma reviravolta singular ou uma expressão barroca dos seus sentimentos, em que nada induz ao riso, nos causa uma tal frieza que, em seguida, lhe é difícil levar-nos a recuperar a disposição de espírito com que nos quer ver. Censura-se isto e não se pensa que as suas peças são, por isso mesmo, reproduções naturais da vida humana. [...]»
 
 
Fonte: Lessing, Gotthold E. (2005) Dramaturgia de Hamburgo, Selecção antológica. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Plutarco, sobre o Amor

Plutarco, filósofo e historiador grego que viveu no século I entre Atenas e Roma, polemiza com um grupo de amigos em torno das relações entre amor e prazer, as preferências entre homens e mulheres para o amor e para a amizade e sobre o casamento. Em "Erotika - Diálogo sobre o amor", encontramos entre os interlocutores posições antagónicas que nos permitem conhecer melhor a vida quotidiana no Mundo Antigo.
 
 
«[...] PROTÓGENES - Se considerarmos a reprodução da espécie humana, teremos sem dúvida alguma o direito de achar o casamento necessário e, sob este pretexto, têm os legisladores muita razão de o honrar diante da multidão. Mas ponham-se de sobreaviso contra a possibilidade de se encontrar a mínima sombra de um verdadeiro amor no gineceu! [...] O amor, com efeito, quando é inspirado por uma rapaz jovem, inteligente, conduz à virtude pelo caminho da amizade. Enquanto que o desejo do homem pela mulher, no melhor dos casos, só leva ao prazer do corpo, a um gozo que só dura alguns instantes. [...] Sólon [legislador e poeta grego, séc. VII/VI a.C.] pensava a mesma coisa. Aos escravos, havia proscrito a pederastia, a entrada nos ginásios, sem se preocupar em interditar-lhes a união com mulheres. "Porque, enquanto a amizade é nobre, é um sentimento elevado, os prazeres do corpo são vulgares e indignos de um homem livre, e não é, pois, concebível que um escravo possa amar rapazes visto só os procurar para fazer sexo tal como se procuram as mulheres." [...]
 
DAFNEU - Se o amor não for abafado por uma união tão contranatural como a homossexualidade, a união de um homem e de uma mulher - esta sim, natural - só pode conduzir ao amor, ao menos pela graça que o acompanha. [...] Finalmente, e para sermos totalmente honestos, Protógenes, devíamos admitir que o amor dos rapazes e o amor das mulheres é a mesma e única paixão. [...]
 
PLUTARCO -Nos dois sexos, as razões que fazem nascer o amor são as mesmas. [...] Um belo corpo é sempre a expressão de uma bela alma.
 
E que preferes tu, rapazes ou raparigas?
Quando veja a beleza, sinto-me bissexual!
 
Podemos ficar um pouco surpreendidos com esta resposta, mas porque é que quando escolhe os seus amores, um homem honesto, se decidiria mais por um sexo que pela beleza? [...] Porque haveria o amador de beleza humana de fazer uma diferença entre os dois sexos, como se distinguisse o vestuário feminino do dos homens? [...]
O desejo furioso, quer seja provocado por uma mulher ou por um rapaz, esta em oposição ao amor.
É absurdo, por outro lado, dizer que a mulher não pode participar no Bem e no Belo. [...] E queriam-nos meter pelos olhos adentro que a sua natureza, maravilhosa e irrepreensível a todos os níveis de respeito, seria incompatível com a amizade? [...]
Só conhecem a "fusão total" os esposos amorosos. Os outros amores parecem-se com esses encontros, com esses toques, com essas combinações de átomos acompanhados de choques e seguidos das separações brutais de que fala Epicuro. Tais uniões não conseguem nunca essa unidade perfeita e completa do amor conjugal que, de um modo exclusivo, faz experimentar prazeres duradoiros. Que luz, que harmonia num casamento de amor! [...]
Muitas vezes censuramos e zombamos dos pederastas devido à sua inconstância. [...] Todavia, aqueles que amam verdadeiramente, não merecem esta censura, e Eurípides era comovente quando dizia, cobrindo de beijos e carícias as faces de Agatão, que já se cobriam de barba:  A beleza goza também dum belo Outono. [...]»
 
 
Fonte: Plutarco. (2000) Erotika, Diálogo sobre o amor. Lisboa: Edições Fim de Século.

Barthes, Representações teatrais na Grécia Antiga

Dada a nossa laicidade, dificilmente podemos compreender a importância que o Teatro teve na Grécia Antiga, dado que era uma manifestação simultaneamente de cariz religioso e cívico. Mas, ainda que nos separem do primeiro concurso ateniense de tragédia 26 séculos, só temos a ganhar se nos debruçarmos sobre os primórdios de um género que acompanhou o triunfo da democracia e a hegemonia de Atenas na Grécia Clássica (século V a.C).
«[...] Sabe-se que as representações teatrais só podiam ter lugar três vezes por ano, por ocasião das festas em honra de Dioniso. Havia por ordem de importância: as Grandes Dionísias, as Leneias, as Dionísias Rurais. [...]
Para todas estas festas, o teatro (que é, à letra, o lugar donde se vê) foi edificado num terreno dedicado a Dioniso. A consagração do local teatral implicava a consagração de tudo o que lá se passava: os espectadores usavam a coroa religiosa, os executantes eram sagrados e, inversamente, o delito tornava-se sacrilégio. [...]
O teatro grego foi um teatro legalmente oferecido aos pobres pelos ricos. A coregia era uma liturgia, isto é, uma obrigação oficialmente imposta aos cidadãos ricos pelo Estado: o corego devia mandar instruir e equipar um coro. [...] Os encargos financeiros eram muito pesados: o corego tinha de alugar a sala de ensaios, pagar o equipamento, fornecer as bebidas para os executantes, encarregar-se do salário diário dos artistas. [...]
Em princípio, a entrada no teatro era gratuita para todos os cidadãos, mas como por causa disso havia uma afluência muito grande, estabeleceu-se primeiro um direito de entrada de dois óbolos por cada dia de espectáculo (um terço do salário diário de um operário não qualificado). Este direito, pouco democrático, já que lesava os pobres, foi rapidamente abolido e substituído por uma subvenção do Estado aos cidadãos pobres. Esta subvenção de dois óbolos por cabeça (diobolia) foi decidida cerca de 410 anos a.C. por Cleofonte e recebeu o nome de theoricon. [...]
O mecanismo dos concursos dramáticos era complexo, porque os Gregos eram muito exigentes acerca da sinceridade das suas competições. O arconte, como vimos, designava os coregos; fixava também a lista de poetas admitidos a concorrer. [...] Havia três concorrentes para a tragédia (cada um apresentava uma tetralogia) e três (mais tarde cinco) para a comédia. [...] O julgamento, que se seguia à festa, era confiado a um júri de cidadãos, designado por sorteio (é preciso não esquecer que para os Gregos a sorte era um sinal dos deuses). [...]
É difícil imaginar instituições mais fortes, laços mais estreitos entre uma sociedade e o seu espectáculo. E como esta sociedade era democrática precisamente no momento em que a arte do espectáculo atingiu o seu auge, de bom grado se fez do teatro grego o próprio modelo do teatro popular. No entanto, é preciso recordar que, por admirável que tenha sido, a democracia ateniense não correspondia nem às condições nem às exigências de uma democracia moderna. Já o dissemos, tratava-se de uma democracia aristocrática: ignorava os metecos e os escravos, só considerava quarenta mil cidadãos dentre os quatrocentos mil habitantes da Ática. [...]»
Fonte: Barthes, Roland. (2009) O óbvio e o obtuso. Lisboa: Edições 70.