Nathalie Sarraute, Nouveau Théâtre

O Nouveau Roman surge como resposta a uma nova concepção do homem, já não como essência que se concretiza mas como permanente construção, existência. Mas, a par de um Nouveau Roman poder-se-á também falar de um Nouveau Théâtre? Sim, na medida em que à preocupação de expôr uma situação através da intersubjectividade, se pretende a descrição, tão objectiva quanto possível, da interioridade, convidando permanentemente o leitor/espectador à co-autoria de forma a completar o que fica por dizer por se tratar do domínio do indizível.
Nathalie Sarraute [1902-1999] vai descrever nos seus romances a vida interior; mais interessada nas situações do que nas personagens observa o que apelidou de tropismos, os movimentos que a palavra lançada, ou mesmo a expressão de um silêncio, provoca no ouvinte. Se, aparentemente, a transposição deste universo íntimo lhe pareceu impossível de realizar no teatro, Sarraute acabou por aventurar-se, começando pelo teatro radiofónico. 


«[...] Nathalie Sarraute  faz-nos ver o mundo da inautenticidade: faz-no-lo ver por toda a parte. E por trás desse muro? Que há? Precisamente nada. Esforços vagos para fugir a qualquer coisa que se adivinha na sombra. A Autenticidade, verdadeira relação com os outros, connosco, com a morte, é sugerida por toda a parte, mas invisível. Pressentimo-la porque lhe fugimos. [...] Há a fuga para os objectos que reflectem pacificamente o universal e a permanência, a fuga para as ocupações quotidianas, a fuga para o mesquinho. [...]
Sobre o "Le Planetarium" de Nathalie Sarraute, Michel Butor escreve: "Onde quer que estejamos, e com quem quer que seja, mentimos na nossa conversação, começamos a lamentar palavras mal as acabamos de pronunciar: não era isso que eu queria dizer, a verdade não era isso, devia ter... Assim todas as palavras que pronunciamos encontram-se rodeadas, comandadas ou contrariadas, ampliadas ou atenuadas por todo um enxame de palavras que não pronunciamos. Estas palavras têm uma ressonância em nós que se prolonga, e que talvez as vá fazer emergir alguns dias depois numa narrativa; é como uma pedra que cai na superfície de um tanque e que provoca ondas que vão até aos bordos. Mas atenção, esta frase que acabamos de dizer, e será quase sempre necessário precisá-lo, esta frase que acaba de nos escapar não é somente seguida de repercussões, de remoinhos próximos ou longínquos, é também precedida de preparativos e esperas." [...]»


Fonte: Margarido, A. & Portela Filho, A. (1962) O Novo Romance. Lisboa: Editorial Presença.

Obra Aberta, Umberto Eco

Obra Aberta de Umberto Eco (1962) ensinou-nos que a interpretação dos textos literários não é tarefa que busque ir de encontro a um sentido pré-determinado pelo autor; ao invés, conta com o contributo do leitor, de cada leitor e em cada momento, para a construção de um sentido que assim não pode conhecer a clausura de um único caminho. O leitor deixa de ser entendido como entidade passiva, mero receptor/descodificador de um sentido para o qual não traz qualquer contributo. Quem já leu o mesmo livro com idades bem diferenciadas ou confrontou a sua leitura com a de outros terá consciência do que se fala, ou seja, das possibilidades de leitura que um mesmo texto pode despoletar. Trata-se de uma nova dialéctica entre a obra e o intérprete.


«[...] Em estética, com efeito, tem-se discutido acerca da "definibilidade" e acerca da "abertura" de uma obra de arte: e estes dois termos referem-se a uma situação fruitiva que todos nós experimentámos e que muitas vezes somos levados a definir: uma obra de arte é um objecto produzido por um autor que organiza uma rede de efeitos comunicativos de modo que cada possível fruidor possa recompreender (através do jogo de respostas à configuração de efeitos, sentida como estímulo pela sensibilidade e pela inteligência) a própria obra, a forma originária imaginada pelo autor. Nesse sentido o autor produz uma forma, em si completa, na intenção de que tal forma seja compreendida e usufruída tal como ele a produziu; todavia, no acto de reacção à rede dos estímulos e de compreensão da sua relação, cada fruidor leva uma situação existencial concreta, uma sensibilidade particularmente condicionada, uma determinada cultura, gostos, propensões, preconceitos pessoais, de modo que a compreensão da forma originária apareça segundo uma perspectiva individual. [...] Uma obra de arte, forma acabada e fechada na sua perfeição de organismo perfeitamente calibrado, é igualmente aberta, com possibilidade de ser interpretada de mil modos diferentes sem que a sua irreproduzível singularidade seja por isso alterada. Cada fruição é assim uma interpretação e uma execução, pois que em cada fruição a obra revive numa perspectiva original. [...] O autor oferece, em suma, ao fruidor uma obra para acabar: não sabe exactamente de que modo a obra poderá ser terminada, mas sabe que a obra terminada será sempre, porém, a sua obra, não uma outra, e que no final do diálogo interpretativo ter-se-á concretizado uma forma que é a sua forma, embora organizada por um outro de um modo que ele não podia prever completamente: uma vez que ele, em substância, tinha proposto possibilidades já organizadas racionalmente, orientadas e dotadas de exigências orgânicas de desenvolvimento. [...]»


Fonte: Eco, Umberto (1989) Obra Aberta. Lisboa: Difel.

Cronologia da História Cultural por Dietrich Schwanitz

Retirada do livro "Cultura - Tudo o que é preciso saber" de Dietrich Schwanitz, esta cronologia (que mutilei para tornar mais concisa) ajuda-nos a perceber as grandes mudanças na História Cultural, informação importante para a contextualização do posicionamento de artistas e obras. Se a escolha de Schwanitz pode ser discutível nalguns momentos históricos, por aquilo a que dá relevância ou pelo que omite, mais questionável ainda será esta versão mutilada, mas, creio, pode ser na mesma útil.


«CRONOLOGIA DA HISTÓRIA CULTURAL

508 a.C. - Reformas democráticas em Atenas

499/477 a.C. - Guerras contra os persas, ascensão de Atenas

443/429 a.C. - Florescimento de Atenas sob Péricles

431 a.C. - Eurípides, Medeia

422 a.C. - Sófocles, Antígona

431 a.C./404 a.C. - Guerra do Peloponeso entre Atenas e Esparta

399 a.C.- Morte de Sócrates

344/323 a.C. - Conquista do Oriente por Alexandre Magno, início da época helénica

146 a.C. - Conquista da Grécia por Roma

31 a.C. - Início da época imperial

7 a.C./30 d.C. - Vida de Jesus de Nazaré

140 - Ptolomeu resume a concepção geocêntrica do mundo

312 - Conversão de Constantino ao cristianismo

410 - Destruição de Roma pelos visigodos

622 - Início da expansão do Islão

1096 - Primeira cruzada

1150 - Redescoberta das obras de Aristóteles

1310/14 - Dante, A Divina Comédia

1455 - Primeira bíblia impressa por Guttenberg

1492 - Colombo descobre a América, expulsão dos judeus de Espanha

1498 - Leonardo da Vinci, Última Ceia

1504 - Miguel Ângelo, David

1517 - As 95 teses de Lutero, início da Reforma

1532 - Nicolau Maquiavel, O Príncipe

1534 - Lutero termina a tradução da bíblia

1545-63 - Concílio de Trento, início da Contra-Reforma

1590/1611 - William Shakespeare escreve os seus dramas

1605 - Miguel de Cervantes, Dom Quixote

1616 - O Papa declara herética a teoria coperniciana

1618/48 - Guerra dos 30 anos

1637 - René Descartes, Discurso do Método

1669 - Molière, Tartufo

1719 - Daniel Defoe, Robinson Crusoe

1723 - Johann Sebastian Bach, Paixão de S. Mateus

1726 - Jonathan Swift, As viagens de Gulliver

1776 - Declaração da Independência dos EUA

1781 - Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura

1787 - Mozart, Don Giovanni

1789 - Revolução Francesa, Declaração dos Direitos do Homem

1807 - Hegel, Fenomenologia do Espírito

1808 - Johann Wolfgang von Goethe, Fausto

1848 - Revolução de 1848, Manifesto Comunista

1859 - Charles Darwin, A origem das espécies

1867 - Karl Marx, O Capital

1869 - Leo Tolstoi, Guerra e Paz

1883/85 - Friedrich Nietzsche, Assim falou Zaratustra

1900 - Sigmund Freud, A interpretação dos sonhos

1914/18 - I Guerra Mundial

1917 - Revolução Russa

1939/45 - II Guerra Mundial

1949 - George Orwell, 1984; Simone de Beauvoir, O segundo sexo

1952 - Samuel Beckett, À espera de Godot

1961 - Michel Foucault, História da Loucura

1963 - Movimento pelos direitos cívicos de Martin Luther King

1968/70 - Movimento estudantil

1985 - Início da Perestroika

1989/90 - Colapso do comunismo no leste europeu, unificação da Alemanha e fim da guerra fria»


Fonte: Schwanitz, D. (2005) Cultura - Tudo o que é preciso saber. Lisboa: D. Quixote.

A Arte e a Revolução, Richard Wagner

O compositor alemão Richard Wagner (1813-1883) redigiu vários textos importantes para a reflexão sobre a obra de arte, nomeadamente este "A Arte e a Revolução" de 1849; aqui defende o fim da separação das diferentes linguagens artísticas (poesia, música, escultura, arquitectura), à semelhança do que acontecia na Tragédia Antiga (o drama como «a mais elevada obra de arte que é possível conceber»), e o livre acesso à cultura por parte de toda a comunidade, opondo-se ao elitismo e à desigualdade reinante. Contra a mercantilização da arte, Wagner vê a necessidade de uma Revolução que tome o homem como ser livre e criativo. O objectivo, quer da Revolução quer da Arte, é o «homem forte e belo».


«[...] Confrontemos agora nos seus traços mais importantes a arte que publicamente se pratica na Europa moderna e a arte pública dos Gregos, para podermos pôr a nu a diferença característica que as separa.
A arte pública dos Gregos que atingiu o apogeu na tragédia era expressão do que havia de mais profundo e mais nobre na consciência popular. O que há de mais profundo e de mais nobre na consciência laica contemporânea é a pura contradição, a negatividade que atravessa a nossa arte. [...]

Nos vastos espaços do anfiteatro grego era a totalidade do povo que participava nas representações. Pelo contrário, nos nossos mais distintos teatros preguiçam apenas os ricos. Os Gregos iam buscar os materiais da sua arte aos produtos mais elevados da cultura comunitária. Nós vamos buscá-los à barbárie social mais acabada. A educação do homem grego fazia dele, no plano do corpo como no do espírito, desde a infância, um verdadeiro objecto da actividade artística e do prazer estético. O embotamento típico da educação contemporânea, na maior parte dos casos meramente orientada na perspectiva do lucro industrial, dá-nos uma satisfação idiota e simultaneamente orgulhosa da nossa inaptidão artística e ensina-nos a procurar os objectos da experiência estética fora de nós, aproximadamente com o mesmo tipo de desejo com que o depravado procura junto de uma prostituta um fugaz prazer amoroso. [...]
Se o artista grego era recompensado antes de mais pelo seu próprio prazer na obra de arte e depois pelo sucesso e pela aprovação públicos, o artista moderno está amarrado a um contrato e a um salário. Estamos então em condições de caracterizar com rigor a diferença essencial: a arte pública dos Gregos era de facto arte, ao passo que a nossa é salariato artístico. [...]
Com a posterior decadência da tragédia a arte foi perdendo cada vez mais a sua qualidade de expressão da consciência pública. O drama desmembrou-se nas respectivas partes constitutivas; a retórica, a escultura, a pintura ou a música abandonaram o bailado unitário em que se moviam até então para seguirem cada uma o seu próprio caminho e se desenvolverem por conta própria, sujeitas a uma solidão necessariamente egoísta. [...]
A obra de arte perfeita, a expressão grandiosa e una de uma sociedade livre e bela, o drama, a tragédia, não renasceu - por maiores que tenham sido alguns dos tragediógrafos entretanto aparecidos - pela simples razão de que não pode renascer e, pelo contrário, tem que voltar a nascer por inteiro. [...]»


Fonte: Wagner, R. (2000) A Arte e a Revolução. Lisboa: Edições Antígona.

O Teatro no romance de Strindberg "O Salão Vermelho"

Considero sempre curioso o cruzamento de informação obtida em fontes diversas sobre o mesmo autor e o seu universo. August Strindberg (1849|1912) é conhecido principalmente pelo seu teatro, sendo, provavelmente, "A Menina Júlia" a sua peça mais representada pelo mundo. Mas é também um romancista notável. Aqui deixo um excerto de "O Salão Vermelho", romance onde é representada a sociedade sueca do final do século XIX - um diálogo entre um aspirante a actor e um director, que não deixará de interessar aos fazedores de teatro.



«[...] Rehnhjelm respondeu que queria representar. [...]

- Posso dar-lhe a minha honesta opinião, senhor? Hmm?  Esqueça o teatro!

- Impossível!

- Repito, esqueça o teatro! É a pior carreira de todas. Uma interminável humilhação, situações desagradáveis, fisgas e flechas, senhor. Acredite em mim quando lhe digo que tornarão a sua vida tão amarga que desejaria nunca ter nascido.

Ele parecia completamente convencido, mas a resolução de Rehnhjelm era inquebrantável.

- Anote as minhas palavras: o meu conselho é o de que deve desistir! Digo-lhe que as perspectivas são tão soturnas que poderia acabar sem nada para além de papéis de figurante durante anos. Pense nisso! E, depois, não venha lamentar-se para junto de mim. Uma carreira no palco é muito difícil, senhor; se soubesse o quão difícil é, nunca se meteria nisso. Acredite em mim, será infernal, isso posso garantir-lhe.

As suas palavras foram em vão. [...]»


Fonte: Strindberg, A. (2015) O Salão Vermelho. Santa cruz: E-Primatur.

Artaud, Conferência no Vieux-Colombier a 13.01.1947

Idolatrado por uns, menosprezado por outros, Antonin Artaud (1896-1948) é um nome que não podemos ignorar quando falamos nas vanguardas dos inícios do séc. XX. Sendo "O Teatro e o seu Duplo" (1938) o seu livro mais importante para pensar o Teatro (onde propõe um Teatro da Crueldade que não se restrinja à palavra ignorando o corpo, não dando primazia à racionalidade mas sim à experiência ritualista, envolvendo verdadeiramente o espectador com a abolição da distinção palco-plateia), aqui deixo algumas transcrições de uma conferência polémica, a última aparição pública de Artaud, no Vieux-Colombier a 13 de Janeiro de 1947, que ele mesmo intitulou "História vivida de Artaud-Momo, frente-a-frente" e um excerto de uma das cartas dirigidas ao editor Henri Parisot (incluídas na edição aqui citada). Os vários testemunhos que ficaram desta sessão pública nem sempre são convergentes, mas sabemos que foi subitamente interrompida pelo próprio Artaud, embora muitos considerem que o essencial tinha já sido dito.
Artaud nunca fez distinção entre a arte e a vida, trazendo para os seus escritos sobre Teatro as situações mais marcantes que vivenciou, como os seus internamentos em instituições psiquiátricas ou a viagem à terra dos Tarahumaras (que registou em livro editado ainda em vida) e o uso de drogas.
O homem que tanto se bateu pela liberdade criativa e de expressão, contra todos os tipos de manipulação e controlo, contra a domesticação do ser humano, passou boa parte da sua vida preso como louco, apesar de afirmar terminantemente «nunca fui louco nem doente» mas poeta. 


«[...] Temos a religião, o exército, a polícia, os costumes, as instituições que desejamos e merecemos, e a sociedade forjou, deveria eu dizer que lentamente, com o tempo, emanou esta arma tão maravilhosamente afinada e pungente, tão pérfida e meticulosamente ajustada, que se chama a psiquiatria, para desencorajar pela base (e, por exemplo, e tal como noutros séculos se envenenava), desencorajar as vontades que pudessem levantar-se para repor as coisas no seu lugar. […]
A sociedade chama-me louco porque me come, e come outros, não ao acaso, não psicanaliticamente em imagem, mas de uma maneira sistemática e concertada, e quis assassinar-me e fazer-me desaparecer por eu ter visto que ela me comia e sempre ter querido dizer, aberta e publicamente, que as únicas relações que teve comigo foram por ter querido forçar-me a deixá-la comer-me à vontade.
A consciência não se fica pelas relações exteriores: bom dia, boa tarde, como vais, gosto de ti, por que não queres tu amar-me, que temos com os seres.
Transborda do espaço imediato e visível do corpo humano.
Quer isto dizer que o corpo é maior e mais vasto, mais extenso, com mais pregas e reviravoltas sobre si próprio do que o olhar imediato pode distinguir e conceber quando o vê.
O corpo é uma multidão excitada, uma espécie de caixa de fundo falso que nunca mais acaba de revelar o que tem dentro.
E tem dentro toda a realidade.
Querendo isto dizer que cada indivíduo existente é tão grande como a imensidão inteira, e pode ver-se na imensidão inteira.
Quem o não vê tem merda nos pés que o impede de evoluir num plano mais vasto do que o seu nariz.
Eu nunca deixei de ver, não o que todas as pessoas me dizem mas o que são quando não falam, não dizem nada e estão longe.
E se eu conheço esta faculdade do corpo humano, não sou o único, a multidão dos iniciados também a conhece. E mesmo dos não iniciados. […]
A massa faz de conta que não gosta das ideias, mas mente porque foi ela quem as impôs.
Tudo o que se chama cérebro vem dela porque ela achou que era essa a melhor forma de se unir a tudo quanto tinha, até ali, recusado. […]
O teatro da crueldade não é de hoje, grandes personagens desde sempre fizeram parte dele: Eurípides, Sófocles, Ésquilo, Chaucer, Ford, Cyril Tourneur, Villon, Baudelaire, Gérard de Nerval, Edgar Poe, e quem sabe se também o senhor ou a senhora ou menina, seja como for o inabordável conde de Lautréamont. [...]»

Carta a Henri Parisot. 
Rodez, 9 de Outubro de 1945

«[…] Desde há 30 anos passo a vida a localizar pelo mundo as seitas que actuam sobre a consciência das pessoas, e creio que as conheço todas. Há-as no Afeganistão, no Turquestão, no Tibete, entre os bonzos das lamarias, há-as entre os muçulmanos das Índias, mas as mais temíveis são dos que ainda se não confessam iniciados mas dia e noite trabalham no oculto buscando apoio no mistério do corpo humano. Dizem estas seitas que são de espírito, e afirmam os espíritos dos corpos onde trabalham que são donos desses corpos e do interior dirigem o eu e o corpo do homem ou da mulher que os transportam. Sendo isto o mais tetanizante e epilepsiante pensamento de que tive alguma vez notícia. A religião católica cristã é que está na base deste facto consumado. Porque se quis espírito e não corpo ou, como na religião intrínseca de Jesus Cristo, no princípio do corpo vê um vazio que fica cheio e a pouco e pouco chega ao cheio que também só é seu desprendimento. Querendo isto dizer que existe um vórtice-abismo na base de cada corpo vivo, um anjo que a pouco e pouco o vai enchendo com as caves da eternidade e, por submersão, quer ocupar nele o seu lugar. Por ter querido divulgar estas coisas é que em todo o lado me chamaram louco e em 1937 acabaram por me meter na prisão, deportar, agredir num navio, internar, envenenar, encamisar, pôr em estado de coma, e ainda não consegui recuperar a liberdade. […]
A vida não é este tédio destilado em que a nossa alma se faz macerar há sete eternidades, não é este torno infernal onde as consciências criam bolor e que precisa de música, poesia, teatro e amor para de vez em quando explodir, embora tão pouco que nem vale a pena falar disso. O homem da terra aborrece-se de morte em si mesmo e tão profundamente, que já não tem consciência disso. Deita-se, dorme, levanta-se, passeia, come, escreve, engole, respira, caga como uma máquina que puseram a trabalhar no mínimo, como um resignado que enterraram na terra das paisagens e que a paisagem subjugou como um servo garrotado no cepo de um mau corpo e obrigado a leituras, ao bom dia, à boa noite, ao como passa, faz bom tempo, a chuva vai refrescar a terra, o que dizem as notícias, venha lá a casa tomar um chá, jogar ao gamão, às cartas, ao jogo de bolas, ao jogo de damas e ao xadrez, embora não seja disto que se trata, quero eu dizer que isto não define a vida imunda em que vivemos. Define-a terem-nos destilado a todos as nossas percepções, as nossas impressões, e não as vivermos mais do que a conta-gotas, respirando por cima e pelo rebordo o ar das paisagens, e o amor pelo exterior do cesto, sem podermos ocupar todo o cesto. E não é porque o amor não tenha alma, a alma do amor é que já não existe. Comigo é o absoluto ou nada, e aqui está o que tenho a dizer a este mundo sem alma nem agar-agar*.É que há um limo no surrealismo de transe, no estado de transe, que as religiões e os seus rituais desde há sete eternidades ressequiram servidos por todos os burgueses e todos os cobardes da terra e da vida. E este limo é regenerador, não se chama a poesia dos poetas nem a música das harmonias, não é nome mas o próprio corpo da alma, a alma que o cristo expulsou da vida para a conservar no seu paraíso (aqui jaz) e as seitas dos iniciados da terra desviaram para centros secretos tendo por fim dá-la a conta-gotas, diariamente, a quem lhes apetece. [...]»

*O ágar-ágar é uma alga muito utilizada em microbiologia para culturas sólidas de bactérias. 

Fonte: Artaud, A. (1995) História vivida de Artaud-Momo (frente-a-frente). Lisboa: Hiena Editora.

A visitar: https://www.youtube.com/watch?v=qhxbVaIN7KI

Strindberg, Sobre o Naturalismo no teatro

Embora o percurso de August Strindberg (1849|1912) pelo teatro não se cinja ao Naturalismo, o prefácio à peça "Menina Júlia" (1888) é elucidativo da aproximação à realidade que o teatro da 2ª metade do séc. XIX experimenta e suas repercussões na cena dramática, numa tentativa em dar conta da complexidade da vida humana.
Neste texto, Strindberg reflecte sobre a construção das personagens, a linguagem, a estrutura do drama, etc. numa busca por um teatro mais intimista, ou seja, mais próximo do espectador e da sua realidade quotidiana.

Strindberg by Christian Krogh

«[...] A concepção burguesa da imutabilidade da alma passou para o teatro onde a classe média tem tido sempre o domínio. "Carácter" tornou-se sinónimo de homem acabado e fixado: alguém que está sempre embriagado, que é continuamente cómico ou patético. Para o desenho basta um defeito (um pé coxo, uma perna de pau, o nariz vermelho) ou a repetição sistemática da mesma frase. [...]
Não acredito nos caracteres simplificados. Um juízo sumário do autor sobre os homens (este é louco; aquele é cruel este é ciumento; aquele é sovina) devia ser contestado e recusado pelos naturalistas, que conhecem a complexidade da alma humana e sabem que o vício tem um reverso muito parecido com a virtude. [...]

Pus os meus caracteres a usar o cérebro irregularmente como acontece na vida real em que, durante uma conversa, uma roda do cérebro pode, mais ou menos por acaso, engrenar noutra roda e em que nenhum assunto fica completamente esgotado. Essa a razão por que o diálogo vagueia. Nas primeiras cenas acumula-se material que é depois trabalhado, repetido, transformado, desenvolvido como o tema de uma composição musical. [...] Fiz assim porque me pareceu que o curso psicológico dos acontecimentos é o que mais interessa ao nosso tempo. [...]

Pelo que diz respeito à técnica, tentei, como experiência, suprimir a divisão em actos. Fiz assim porque penso que a nossa decrescente capacidade de ilusão pode ser perturbada por intervalos, durante os quais o espectador tem tempo de reflectir e escapar à sugestão do autor hipnotizador. [...]
Pelo que toca ao cenário, fui pedir à pintura impressionista a sua assimetria, a sua concisão prenhe e abrupta - e penso que deste modo intensifiquei as possibilidades de criar ilusão. [...] a imaginação é posta em funcionamento e preenche o que falta aos olhos. [...] Com um cenário único pode esperar-se realismo na imagem. [...]

Outra inovação necessária seria a abolição da ribalta. [...] Torna-se difícil fazer passar de forma completa e eficaz o jogo do olhar para além da ribalta. [...]

Não tenho ilusões sobre a minha capacidade de persuadir os actores a representarem para o público e não com ele, embora isso fosse altamente desejável. [...] Gostava que cada cena fosse feita no local exacto que a sua representação exige. [...]

Representando num palco pequeno, um drama psicológico moderno em que as reacções subtis da alma se devem reflectir pela expressão do rosto mais que pelo gesto, pelo grito ou pelo som sem significado, é o terreno ideal para experiência de uma iluminação lateral forte, com os actores sem maquilhagem ou com muita pouca.
Se, além disso, a orquestra com as luzes incomodativas das estantes e com as caras dos músicos voltadas para o público, se pudesse tornar invisível; se a plateia (a "orquestra") pudesse ser levantada de modo a que os olhos dos espectadores ficassem a um nível mais alto que os joelhos dos actores; se se eliminassem os camarotes de boca, com os seus espectadores gulosos e retardatários (a minha "bête noire"); se houvesse escuro absoluto na sala enquanto a peça se representa; e se, acima de tudo, pudéssemos ter um palco íntimo e uma sala íntima [como será o Teatro Íntimo que Strindberg inaugurou em Estocolmo e que subsistiu de 1907 a 1910] - assistiríamos talvez ao nascimento de um drama novo, e o teatro voltaria a ser uma instituição de prazer para pessoas cultas. [...]»


Fonte: Strindberg A. (1980) Menina Júlia. Lisboa: A Regra do Jogo.