Artaud, Conferência no Vieux-Colombier a 13.01.1947

Idolatrado por uns, menosprezado por outros, Antonin Artaud (1896-1948) é um nome que não podemos ignorar quando falamos nas vanguardas dos inícios do séc. XX. Sendo "O Teatro e o seu Duplo" (1938) o seu livro mais importante para pensar o Teatro (onde propõe um Teatro da Crueldade que não se restrinja à palavra ignorando o corpo, não dando primazia à racionalidade mas sim à experiência ritualista, envolvendo verdadeiramente o espectador com a abolição da distinção palco-plateia), aqui deixo algumas transcrições de uma conferência polémica, a última aparição pública de Artaud, no Vieux-Colombier a 13 de Janeiro de 1947, que ele mesmo intitulou "História vivida de Artaud-Momo, frente-a-frente" e um excerto de uma das cartas dirigidas ao editor Henri Parisot (incluídas na edição aqui citada). Os vários testemunhos que ficaram desta sessão pública nem sempre são convergentes, mas sabemos que foi subitamente interrompida pelo próprio Artaud, embora muitos considerem que o essencial tinha já sido dito.
Artaud nunca fez distinção entre a arte e a vida, trazendo para os seus escritos sobre Teatro as situações mais marcantes que vivenciou, como os seus internamentos em instituições psiquiátricas ou a viagem à terra dos Tarahumaras (que registou em livro editado ainda em vida) e o uso de drogas.
O homem que tanto se bateu pela liberdade criativa e de expressão, contra todos os tipos de manipulação e controlo, contra a domesticação do ser humano, passou boa parte da sua vida preso como louco, apesar de afirmar terminantemente «nunca fui louco nem doente» mas poeta. 


«[...] Temos a religião, o exército, a polícia, os costumes, as instituições que desejamos e merecemos, e a sociedade forjou, deveria eu dizer que lentamente, com o tempo, emanou esta arma tão maravilhosamente afinada e pungente, tão pérfida e meticulosamente ajustada, que se chama a psiquiatria, para desencorajar pela base (e, por exemplo, e tal como noutros séculos se envenenava), desencorajar as vontades que pudessem levantar-se para repor as coisas no seu lugar. […]
A sociedade chama-me louco porque me come, e come outros, não ao acaso, não psicanaliticamente em imagem, mas de uma maneira sistemática e concertada, e quis assassinar-me e fazer-me desaparecer por eu ter visto que ela me comia e sempre ter querido dizer, aberta e publicamente, que as únicas relações que teve comigo foram por ter querido forçar-me a deixá-la comer-me à vontade.
A consciência não se fica pelas relações exteriores: bom dia, boa tarde, como vais, gosto de ti, por que não queres tu amar-me, que temos com os seres.
Transborda do espaço imediato e visível do corpo humano.
Quer isto dizer que o corpo é maior e mais vasto, mais extenso, com mais pregas e reviravoltas sobre si próprio do que o olhar imediato pode distinguir e conceber quando o vê.
O corpo é uma multidão excitada, uma espécie de caixa de fundo falso que nunca mais acaba de revelar o que tem dentro.
E tem dentro toda a realidade.
Querendo isto dizer que cada indivíduo existente é tão grande como a imensidão inteira, e pode ver-se na imensidão inteira.
Quem o não vê tem merda nos pés que o impede de evoluir num plano mais vasto do que o seu nariz.
Eu nunca deixei de ver, não o que todas as pessoas me dizem mas o que são quando não falam, não dizem nada e estão longe.
E se eu conheço esta faculdade do corpo humano, não sou o único, a multidão dos iniciados também a conhece. E mesmo dos não iniciados. […]
A massa faz de conta que não gosta das ideias, mas mente porque foi ela quem as impôs.
Tudo o que se chama cérebro vem dela porque ela achou que era essa a melhor forma de se unir a tudo quanto tinha, até ali, recusado. […]
O teatro da crueldade não é de hoje, grandes personagens desde sempre fizeram parte dele: Eurípides, Sófocles, Ésquilo, Chaucer, Ford, Cyril Tourneur, Villon, Baudelaire, Gérard de Nerval, Edgar Poe, e quem sabe se também o senhor ou a senhora ou menina, seja como for o inabordável conde de Lautréamont. [...]»

Carta a Henri Parisot. 
Rodez, 9 de Outubro de 1945

«[…] Desde há 30 anos passo a vida a localizar pelo mundo as seitas que actuam sobre a consciência das pessoas, e creio que as conheço todas. Há-as no Afeganistão, no Turquestão, no Tibete, entre os bonzos das lamarias, há-as entre os muçulmanos das Índias, mas as mais temíveis são dos que ainda se não confessam iniciados mas dia e noite trabalham no oculto buscando apoio no mistério do corpo humano. Dizem estas seitas que são de espírito, e afirmam os espíritos dos corpos onde trabalham que são donos desses corpos e do interior dirigem o eu e o corpo do homem ou da mulher que os transportam. Sendo isto o mais tetanizante e epilepsiante pensamento de que tive alguma vez notícia. A religião católica cristã é que está na base deste facto consumado. Porque se quis espírito e não corpo ou, como na religião intrínseca de Jesus Cristo, no princípio do corpo vê um vazio que fica cheio e a pouco e pouco chega ao cheio que também só é seu desprendimento. Querendo isto dizer que existe um vórtice-abismo na base de cada corpo vivo, um anjo que a pouco e pouco o vai enchendo com as caves da eternidade e, por submersão, quer ocupar nele o seu lugar. Por ter querido divulgar estas coisas é que em todo o lado me chamaram louco e em 1937 acabaram por me meter na prisão, deportar, agredir num navio, internar, envenenar, encamisar, pôr em estado de coma, e ainda não consegui recuperar a liberdade. […]
A vida não é este tédio destilado em que a nossa alma se faz macerar há sete eternidades, não é este torno infernal onde as consciências criam bolor e que precisa de música, poesia, teatro e amor para de vez em quando explodir, embora tão pouco que nem vale a pena falar disso. O homem da terra aborrece-se de morte em si mesmo e tão profundamente, que já não tem consciência disso. Deita-se, dorme, levanta-se, passeia, come, escreve, engole, respira, caga como uma máquina que puseram a trabalhar no mínimo, como um resignado que enterraram na terra das paisagens e que a paisagem subjugou como um servo garrotado no cepo de um mau corpo e obrigado a leituras, ao bom dia, à boa noite, ao como passa, faz bom tempo, a chuva vai refrescar a terra, o que dizem as notícias, venha lá a casa tomar um chá, jogar ao gamão, às cartas, ao jogo de bolas, ao jogo de damas e ao xadrez, embora não seja disto que se trata, quero eu dizer que isto não define a vida imunda em que vivemos. Define-a terem-nos destilado a todos as nossas percepções, as nossas impressões, e não as vivermos mais do que a conta-gotas, respirando por cima e pelo rebordo o ar das paisagens, e o amor pelo exterior do cesto, sem podermos ocupar todo o cesto. E não é porque o amor não tenha alma, a alma do amor é que já não existe. Comigo é o absoluto ou nada, e aqui está o que tenho a dizer a este mundo sem alma nem agar-agar*.É que há um limo no surrealismo de transe, no estado de transe, que as religiões e os seus rituais desde há sete eternidades ressequiram servidos por todos os burgueses e todos os cobardes da terra e da vida. E este limo é regenerador, não se chama a poesia dos poetas nem a música das harmonias, não é nome mas o próprio corpo da alma, a alma que o cristo expulsou da vida para a conservar no seu paraíso (aqui jaz) e as seitas dos iniciados da terra desviaram para centros secretos tendo por fim dá-la a conta-gotas, diariamente, a quem lhes apetece. [...]»

*O ágar-ágar é uma alga muito utilizada em microbiologia para culturas sólidas de bactérias. 

Fonte: Artaud, A. (1995) História vivida de Artaud-Momo (frente-a-frente). Lisboa: Hiena Editora.

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