Laclos, Libertinagem no séc. XVIII (Ligações Perigosas)

A propósito das recentes encenações da peça "Quarteto" de Heiner Muller, que tem como ponto de partida o subversivo romance epistolar de Choderlos de Laclos (1741-1803) "Ligações Perigosas" (1782), pareceu-me pertinente deixar aqui alguma informação sobre a abordagem à Libertinagem no século XVIII francês. É neste século que o termo libertino adquire o significado de devasso que ainda hoje lhe atribuímos. A Libertinagem, difundida entre os jovens aristocratas, podia ainda no século anterior ser entendida como instauração de uma ordem livre fundada na Razão. O livre-pensador, não se deixando subjugar pelas normas sociais vigentes, nomeadamente, os dogmas religiosos, atribui o destino do homem ao próprio homem e enaltece o homem natural. O prazer é conforme à natura, nenhum Deus, a existir um, o condenaria, diria Bocage. 
É Crébillon Filho que define o libertino como aquele que se rege pelo autodomínio para subjugar o outro em prol do seu próprio prazer, fazendo alarido do seu triunfo; a esta designação correspondem o visconde de Valmont e a marquesa de  Merteuil de Ligações Perigosas. Trata-se de um jogo de poder, de domínio sobre o outro, para preencher uma existência vazia e privilegiada.
Mas pretendia Laclos fazer a apologia da libertinagem ou denunciar os seus efeitos nefastos?

Carta nº 96: do visconde de Valmont à marquesa de Merteuil

«Aposto que, após a vossa aventura, esperais diariamente os meus cumprimentos e os meus elogios; não tenho sequer dúvida de que o meu longo silêncio vos  terá provocado uma certa zanga; mas que quereis?, pensei sempre que, quando só havia louvores a tecer a uma mulher, podíamos ter confiança nela e ocuparmo-nos de outro assunto. No entanto, agradeço-vos por minha conta e felicito-vos pela vossa. Posso mesmo, para vos tornar perfeitamente feliz, convir que por esta vez vós tendes ultrapassado a minha expectativa. Em seguida, vejamos se, pelo meu lado, terei preenchido a vossa em parte.
Não é de Mme. de Tourvel que vos quero falar; a marcha demasiado lenta desse assunto desagrada-vos; vós só apreciais os casos arrumados. As cenas moderadas aborrecem-vos e eu, pelo meu lado, nunca tinha saboreado o prazer que experimento nestas pretensas lentidões.
Sim, gosto de ver, de considerar essa mulher prudente, comprometida, sem se ter disso apercebido, num caminho que não permite o regresso e cujo declive rápido e perigoso a arrasta, sem ela o desejar, forçando-a a seguir-me. Assustada com o perigo que corre, gostaria de parar mas não pode deter-se. [...] As preces fervorosas, as súplicas humildes, tudo o que os mortais no seu temor oferecem à Divindade, sou eu que os recebo dela. Quereis então que eu, surdo aos seus pedidos e destruindo eu próprio o culto que ela me presta, me empregue em precipitar o poder que ela invoca para a sustentar? Ah, deixai-me pelo menos o tempo de observar esses emocionantes combates entre o amor e a virtude.
Como! Esse mesmo espectáculo que vos faz correr ao teatro, que ali aplaudis com vigor, pensais que é menos emocionante visto na realidade! Esses sentimentos de uma alma pura e terna que teme a felicidade que deseja e não cessa de se defender mesmo quando deixa de resistir, vós os escutais com entusiasmo: eis os deliciosos prazeres que esta mulher celeste me oferece todos os dias; e vós acusais-me de lhes saborear os encantos! Ah! Chegará demasiado depressa o tempo em que, degradada pela sua própria queda, ela não será para mim mais do que uma mulher vulgar.
Mas eu esqueço, falando-vos dela, que o não queria fazer. Não sei que poder a ela me liga, a ela me conduz, incessantemente, mesmo quando a ultrajo. Afastemos a sua perigosa ideia; que eu regresse a mim próprio para tratar de um assunto mais alegre. Trata-se da vossa pupila [Volanges], agora tornada a minha, e espero que neste caso vós me ireis reconhecer. [...]
Depois de ter acalmado os seus primeiros receios, como eu não tinha ido ali para conversar, arrisquei algumas liberdades. Decerto não lhe tinham ensinado bem, no convento, a quantos perigos diversos está exposta a tímida inocência, e tudo o que ela tem a guardar para não ser surpreendida, porque, pondo toda a sua atenção e as suas forças em se defender de um beijo que não passava de um falso ataque, todo o resto era deixado sem defesa; como não aproveitar! Mudei, pois, o meu traçado e tomei imediatamente posição. Pensei então estarmos perdidos os dois: a jovem, apavorada, quis gritar de boa-fé; felizmente, a voz extinguiu-se-lhe nas lágrimas. Também tinha tentado puxar o cordão da campainha, mas aí a minha habilidade tinha-a retido a tempo. [...]
Retirei-me apenas ao romper do dia, quebrado de sono e de fadiga. No entanto sacrifiquei um e a outra ao desejo de me encontrar esta manhã ao almoço: amo apaixonadamente os aspectos da manhã. Não fazeis ideia deste. Era um embaraço no porte, uma dificuldade no andar, olhos sempre baixos e olheiras tão fundas! O rosto tão redondo estava alongado! Nada mais agradável. E pela primeira vez a mãe, alarmada com aquela alteração extrema, manifestava-lhe um interesse bastante terno! E a presidente [Tourvel], também, afadigava-se em torno dela! Os cuidados desta são apenas um empréstimo; virá um dia em que eles lhe poderão ser devolvidos e esse dia não está longe. Adeus, minha bela amiga.»


Fonte: AA.VV. (1972) A arte de amar no século XVIII. Porto: Editorial Inova.
Foto: Manuel Taboada (2014), Siena, Santa Maria Della Scala, Sculpture by Tito.