Strindberg, Sobre o Naturalismo no teatro

Embora o percurso de August Strindberg (1849|1912) pelo teatro não se cinja ao Naturalismo, o prefácio à peça "Menina Júlia" (1888) é elucidativo da aproximação à realidade que o teatro da 2ª metade do séc. XIX experimenta e suas repercussões na cena dramática, numa tentativa em dar conta da complexidade da vida humana.
Neste texto, Strindberg reflecte sobre a construção das personagens, a linguagem, a estrutura do drama, etc. numa busca por um teatro mais intimista, ou seja, mais próximo do espectador e da sua realidade quotidiana.

Strindberg by Christian Krogh

«[...] A concepção burguesa da imutabilidade da alma passou para o teatro onde a classe média tem tido sempre o domínio. "Carácter" tornou-se sinónimo de homem acabado e fixado: alguém que está sempre embriagado, que é continuamente cómico ou patético. Para o desenho basta um defeito (um pé coxo, uma perna de pau, o nariz vermelho) ou a repetição sistemática da mesma frase. [...]
Não acredito nos caracteres simplificados. Um juízo sumário do autor sobre os homens (este é louco; aquele é cruel este é ciumento; aquele é sovina) devia ser contestado e recusado pelos naturalistas, que conhecem a complexidade da alma humana e sabem que o vício tem um reverso muito parecido com a virtude. [...]

Pus os meus caracteres a usar o cérebro irregularmente como acontece na vida real em que, durante uma conversa, uma roda do cérebro pode, mais ou menos por acaso, engrenar noutra roda e em que nenhum assunto fica completamente esgotado. Essa a razão por que o diálogo vagueia. Nas primeiras cenas acumula-se material que é depois trabalhado, repetido, transformado, desenvolvido como o tema de uma composição musical. [...] Fiz assim porque me pareceu que o curso psicológico dos acontecimentos é o que mais interessa ao nosso tempo. [...]

Pelo que diz respeito à técnica, tentei, como experiência, suprimir a divisão em actos. Fiz assim porque penso que a nossa decrescente capacidade de ilusão pode ser perturbada por intervalos, durante os quais o espectador tem tempo de reflectir e escapar à sugestão do autor hipnotizador. [...]
Pelo que toca ao cenário, fui pedir à pintura impressionista a sua assimetria, a sua concisão prenhe e abrupta - e penso que deste modo intensifiquei as possibilidades de criar ilusão. [...] a imaginação é posta em funcionamento e preenche o que falta aos olhos. [...] Com um cenário único pode esperar-se realismo na imagem. [...]

Outra inovação necessária seria a abolição da ribalta. [...] Torna-se difícil fazer passar de forma completa e eficaz o jogo do olhar para além da ribalta. [...]

Não tenho ilusões sobre a minha capacidade de persuadir os actores a representarem para o público e não com ele, embora isso fosse altamente desejável. [...] Gostava que cada cena fosse feita no local exacto que a sua representação exige. [...]

Representando num palco pequeno, um drama psicológico moderno em que as reacções subtis da alma se devem reflectir pela expressão do rosto mais que pelo gesto, pelo grito ou pelo som sem significado, é o terreno ideal para experiência de uma iluminação lateral forte, com os actores sem maquilhagem ou com muita pouca.
Se, além disso, a orquestra com as luzes incomodativas das estantes e com as caras dos músicos voltadas para o público, se pudesse tornar invisível; se a plateia (a "orquestra") pudesse ser levantada de modo a que os olhos dos espectadores ficassem a um nível mais alto que os joelhos dos actores; se se eliminassem os camarotes de boca, com os seus espectadores gulosos e retardatários (a minha "bête noire"); se houvesse escuro absoluto na sala enquanto a peça se representa; e se, acima de tudo, pudéssemos ter um palco íntimo e uma sala íntima [como será o Teatro Íntimo que Strindberg inaugurou em Estocolmo e que subsistiu de 1907 a 1910] - assistiríamos talvez ao nascimento de um drama novo, e o teatro voltaria a ser uma instituição de prazer para pessoas cultas. [...]»


Fonte: Strindberg A. (1980) Menina Júlia. Lisboa: A Regra do Jogo.



Nietzsche, A Origem da Tragédia

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844|1900), profundo conhecedor da cultura grega, escreve "A Origem da Tragédia e o Espírito da Música" em 1871, onde defende que a Arte é «a missão mais elevada e a actividade essencialmente metafísica da vida humana».
Ainda que mais tarde, nomeadamente num posfácio de 1886, tenha considerado este livro da sua juventude «mal escrito, difícil, pouco cuidadoso com o rigor lógico» e na sua obra abundem as contradições e a ambiguidade, algumas ideias aqui apresentadas pela 1ª vez foram depois desenvolvidas com maior profundidade e alcance, permanecendo basilares no seu pensamento: a compreensão do fenómeno dionisíaco e a rejeição do socratismo.
Nietzsche rejeita o Iluminismo, que crê no poder da razão e no progresso, aceitando a vida como problemática e causadora de sofrimento. A Arte, e particularmente a Tragédia Ática (Ésquilo e Sófocles, pois com Eurípides o método racionalista imiscui-se na tragédia), apresenta-se como símbolo das duas forças fundamentais do ser: o Dionisíaco (Diónisos, deus do vinho) e o Apolíneo (Apolo, deus profético, da sabedoria iluminada pelo sentido da medida, da reflexão), forças opostas que se combatem mutuamente, mas interdependentes. A Tragédia Antiga é a representação apolínea do dionisíaco.


«[...] Debaixo do encantamento dionisíaco, não é apenas a aliança do homem com o homem que se renova, mas é também a natureza alienada, hostil ou subjugada, que celebra de novo a sua festa de reconciliação com o seu filho pródigo, o homem. [...]
Todo o artista é um "imitador", quer se trate do artista apolíneo do sonho, quer se trate do artista dionisíaco da embriaguês, quer se trate ainda, como é o caso da tragédia grega, de um artista da embriaguês e do sonho, ao mesmo tempo. [...]
Para poderem viver os Gregos, impelidos pela mais imperiosa das necessidades, criaram os seus deuses. [...]

Receio que, com a nossa veneração actual por tudo o que é natural e real, cheguemos aos antípodas do idealismo, isto é, à terra dos museus de figuras de cena.[...]
Era a natureza, ainda não manchada por forma alguma de conhecimento, ainda não rasgada por qualquer forma de civilização, o que o grego via na imagem do sátiro. [...]

Mas é preciso ter sempre presente no espírito que o público da tragédia grega se encontrava no coro da orquestra, de que não havia oposição alguma entre o público e o coro, porquanto, em união, todos formavam um grande coro sublime dos sátiros, dançando e cantando, ou homens que se faziam representar por estes sátiros.
Podemos então considerar que o coro, na forma primitiva da tragédia original, era uma espécie de espelho em que o homem dionisíaco se reflectia a si próprio - fenómeno que se nos torna muito claro, por analogia com o actor verdadeiramente dotado que vê pairar diante dos seus olhos, como se estivesse quase a tocá-la, a personagem que está a representar. [...]

O encantamento é a condição prévia de toda a arte dramática. [...]
Até Eurípedes nunca deixou Diónisos de ser o herói trágico e que todas as personagens ilustres do teatro grego, Prometeu, Édipo, etc., não foram mais do que máscaras deste herói original - Diónisos. [...] Com ele [Eurípides] o homem comum deixou os bancos dos espectadores e subiu ao palco, e o espelho que outrora reflectia só traços nobres e altivos passou a reproduzir escrupulosamente ecom minúcia mesmo até as disformidades da natureza. [...] A mediocridade burguesa, na qual Eurípedes punha todas as suas esperanças políticas, passou a ter voz, enquanto que até então só o semideus e o sátiro inebriado, criatura semi-humana, haviam determinado o carácter da linguagem. [...]

Sócrates, o herói dialéctico do drama platónico, assemelha-se ao herói euripediano que se vê obrigado a justificar os seus actos por argumentos e contra-argumentos e que, por isso mesmo, se arrisca a não ser capaz, muitas vezes, de suscitar a nossa compaixão trágica. [...]
O mito trágico só pode compreender-se como uma representação concreta da sabedoria dionisíaca, por processos artísticos apolíneos. [...]»


Fonte: Nietzsche. (2002) A Origem da Tragédia. Lisboa: Lisboa Editora.