Lipovetsky, A personalização na pós-modernidade e suas consequências

Gilles Lipovetsky, filósofo francês que nos ajuda a pensar os nossos dias, marcou os anos 80 com o lançamento do livro A Era do Vazio (1983) onde dissertava sobre a indiferença pelo sentido, sentido esse que tanto tinha preocupado as gerações que viveram as duas Grandes Guerras. O livro que, após 30 anos, continua a ser uma referência para pensar a actualidade, com as noções de hiperindividualismo, narcisismo colectivo, ausência de ídolos e tabus, o recurso ao humor para ultrapassar a indiferença, permite-nos uma autoanálise pelo modo como nos ajuda a observar a sociedade em que estamos inseridos.
Por ser tão rico nas temáticas abordadas, optei por escolher excertos que reflectem o processo de personalização, pelo impacto que acarreta no ser social. 
 
 
«[...] Longe de estar numa relação de descontinuidade com o modernismo, a era pós-moderna define-se pelo prolongamento e a generalização de uma das suas tendências constitutivas, o processo de personalização, e correlativamente pela redução progressiva da sua outra tendência, o processo disciplinar. [...] Só no quadro desta ampla continuidade democrática e individualista é que se delineia a originalidade do momento pós-moderno, a saber a predominância do individual sobre o universal, do psicológico sobre o ideológico, da comunicação sobre a politização, da diversidade sobre a homogeneidade, do permissivo sobre o coercivo. [...]
 
Mais ainda, a própria religião é arrastada pelo processo de personalização: é-se crente mas à lista, conserva-se este dogma e elimina-se aquele, misturam-se os Evangelhos com o Corão, o zen ou o budismo, a espiritualidade entrou na época caleidoscópica do super-mercado e do self-service. [...] A renovação espiritual não resulta de uma ausência trágica de sentido, não é uma resistência à dominação tecnocrática, mas causada pelo individualismo pós-moderno, reproduz a sua lógica flutuante.[...]
 
O processo de personalização dilui todas as grandes figuras da autoridade, mina o princípio de exemplo, demasiado tributário de uma era distante e autoritária que sufocava as espontaneidades singulares, dissolve por fim as convicções em matéria de educação: a dessubstancialização narcísica manifestava-se no centro da família nuclear como impotência, desapropriação e demissão educativa. [...] O processo de personalização que trabalha no sentido de aumentar a responsabilidade dos indivíduos favorece, de facto, comportamentos aberrantes, instáveis, indiferentes de algum modo ao princípio de realidade, e por isso mesmo em consonância com o narcisismo dominante e correlativo: o real transformado em espectáculo irreal, em expositor de vidro sem espessura, pela lógica das solicitações. Consequência da desafecção das grandes finalidades sociais e da preeminência conferida ao presente, o neo-narcisismo é uma personalidade flutuante, sem estrutura nem vontade, sendo a labilidade e a emotividade as suas características maiores. [...]
 
Quando o indivíduo deixa de ser meio de um fim exterior e passa a ser considerado e a considerar-se como fim último, as instituições sociais perdem o seu halo de sagrado. [...] A grande fase do individualismo revolucionário termina ante os nossos olhos: depois de ter sido um agente de guerra social, o individualismo contribui actualmente para abolir a ideologia da luta de classes. [...] Maio 68 é já uma revolução personalizada, a revolta faz-se contra a autoridade repressiva do Estado, contra as separações e imposições burocráticas incompatíveis com a livre afirmação e desenvolvimento do indivíduo. A ordem da revolução humaniza-se, levando em conta as aspirações subjectivas, a existência e a vida: à revolução sangrenta substituiu-se a revolução «estilhaçada», multidimensional, transição quente entre a era das revoluções sociais e políticas em que o interesse colectivo prima sobre o dos particulares e a era narcísica, apática, desideologizada. [...]»
 
 
Fonte: Lipovetsky, Gilles. (1989) A Era do Vazio. Lisboa: Relógio d'Água.
 
 
 

Ionesco, A irracionalidade e o Teatro do Absurdo

Eugène Ionesco (1912-1994) [1909 é apontado como ano de nascimento nalgumas fontes] é um autor romeno, tendo adquirido a nacionalidade francesa, conotado com o Teatro do Absurdo, a que prefere chamar Teatro Novo ou de Vanguarda.
Em A Busca Intermitente, livro autobiográfico, diarístico, que redige entre 1986 e 1987, o autor reflecte sobre a sua vida pessoal, a sua obra e sobre o tempo percorrido com a sinceridade que, penso, só a velhice permite.
Eis alguns excertos que revelam a sua angústia perante o que considerava ser a falta de reconhecimento pelo seu papel na criação de um Teatro dito «do absurdo» [termo cunhado por Esslin para agrupar vários autores que após a II Grande Guerra experimentavam uma dramaturgia que explorava a falta de sentido da condição humana].
 
 
«[...] Não posso impedir que as minhas obsessões, a minha vaidade, me atormentem. É realmente muito irritante ouvir dizer ou ler num jornal que Beckett é o promotor do teatro dito «do absurdo». Mas fui eu que, na encenação de Nicolas Bataile, fiz representar, em 1950, A Cantora Careca, nos Noctambules e, em 1951, A Lição, no Théâtre de Poche. Em Abril de 1952, Les Chaises, no Théâtre du Nouveau-Lancry, com encenação de Sylvain Dhomme. Em 1953, Victimes du devoir, com Jacques Mauclair; em 1954, Amédée ou Comment s'en débarrasser, com encenação de Jean-Marie Serreau. [...]
Quanto a Beckett, fez a sua aparição no teatro em fins de 1953, com À espera de Godot. O teatro dito «do absurdo» (Esslin) ou da «dérision» (definição de E. Jacquart) e que eu prefiro chamar «o teatro novo» ou «de vanguarda», uma vanguarda que se mantém viva, já que, dos anos 50 para cá, esse teatro, tão característico, não houve ainda nada que ocupasse o lugar dele: o teatro novo prosperava já nas tábuas graças a mim, a Adamov e também a gente como Jean Tardieu (insuficientemente honrado) e a gente mais nova, Weingarten, Dubillard e Raymond Queneau. [...] Diz-se que Beckett tinha escrito já o Godot em 1947. Mas era extremamente discreto. De resto, os primeiros esboços da Cantora Careca, que então se chamava O inglês sem mestre, tinha-os escrito em 1943, na Roménia, e facilmente o posso comprovar.
Beckett, aliás, não é o que se possa chamar um «membro» da família «do absurdo».: o humor dele provém, pertence a uma outra tradição, a um folclore, o irlandês. [...]
Beckett é demasiado lúcido, demasiado frio, demasiado calculado, sabe muito (demasiado) conscientemente o que deve e não deve dizer. Não deu qualquer espaço na sua obra, nele próprio, nem à surpresa, nem à contemplação, nem à lucidez segunda da irracionalidade, à (sua) profundidade mais negra do que o seu humor negro. Faz «estilo» com a miséria do mundo, e a sua, e a nossa.
É por isso que ele é limitado. Talvez mesmo medíocre - apesar (ou por causa) da sua ciência.
Embrenha-se na noite com muita claridade, demasiada. É por isso que agrada. Nem um erro, nem um descuido, nada há ali ao acaso. É por isso que vai deixar de agradar. [...]
 
Na supra-racionalidade da ciência, à supra-racionalidade da ciência opõe-se aquilo a que se chama a irracionalidade do mundo, dos homens, no nosso comportamento. A irracionalidade é muito mais poderosa do que a racionalidade: o nosso comportamento, os nossos erros, assim no-lo provam. [...]
É evidente que caminhamos para a catástrofe, é evidente. À Catástrofe, à derrocada para a catástrofe continua a chamar-se Progresso ( o «progresso» na tal linguagem estereotipada). [...]
A irracionalidade é mais poderosa do que a racionalidade. No irracional repousa a verdade. É lá que devemos ir procurá-la. Mas só podemos, paradoxo, procura-la com a nossa razão tola, a razão que não vê, e se é no irracional que está a verdade, e já que ela é eros e thanatos, o bem (o positivo) e o mal (negativo), deixemo-nos impelir pelo bem que não compreendemos, mas deixemo-nos levar por Ele, rezemos-Lhe para isso, rezemos. [...]»
 
 
Fonte: Ionesco, Eugene. (1990) A busca intermitente. Lisboa: Difel.