Barthes, O leitor e o crítico

Em Crítica e Verdade (1966), Roland Barthes (1915-1980) explicita em que consiste a Nova Crítica em resposta aos ataques que lhe são dirigidos. Uma vez que não é matéria que se enquadre nos propósitos deste blog, retiro deste livro apenas um excerto que nos lembra a importância do leitor e de como não pode ser substituído pelo crítico, ainda que a abordagem deste possa ser útil para acedermos a textos mais herméticos. É que «Só a leitura ama a obra, mantém com ela uma relação de desejo.»
 «[...] Resta ainda uma última ilusão a que temos de renunciar: o crítico não pode, de todo, substituir-se ao leitor. É inútil ele pretender - ou pedirem-lhe - que empreste uma voz, por muito respeitosa, à leitura dos outros, que se reduza a ser, ele próprio, um leitor no qual outros leitores delegaram a expressão dos seus próprios sentimentos, devido ao seu saber ou às suas opiniões, numa palavra, que represente os direitos de uma colectividade sobre a obra. E porquê? Porque mesmo definindo o crítico como um leitor que escreve, a própria definição implica que esse leitor depara, no seu caminho, com um medianeiro temível: a escrita.
Ora escrever equivale de certo modo a fracturar o mundo (o livro) e a refazê-lo. [...]
Assim, "tocar" um texto, não com os olhos, mas com a escrita, abre, entre a crítica e a leitura, um abismo, o mesmo que qualquer significação abre entre o seu bordo significante e o seu bordo significado. Porque, tanto do sentido que a leitura dá à obra como do significado, nada se sabe, talvez porque esse sentido, sendo o desejo, se estabelece para além do código da língua. Só a leitura ama a obra, mantém com ela uma relação de desejo. Ler é desejar a obra, é pretender ser a obra, é recusar dobrar a obra fora de qualquer outra fala que não a própria fala da obra: o único comentário que um puro leitor, que puro se mantivesse, poderia produzir, seria o decalque [...]. Passar da leitura à crítica é mudar de desejo, é deixar de desejar a obra para desejar a própria linguagem. Mas, pelo mesmo acto é também remeter a obra para o desejo da escrita, que a gerou. [...]»


Fonte: Barthes, Roland. (1997) Crítica e Verdade. Lisboa: edições 70.

Dürrenmatt, Tragédia vs. Comédia

Friedrich Dürrenmat (1921-1990), autor de peças de teatro, romances policiais e poesia, que descobri através da célebre peça "A visita da velha senhora" de 1956, reflecte neste ensaio de 1955, intitulado Problemas do teatro, sobre as unidades de lugar, tempo e acção, os espaços cénicos, os recursos do dramático e do épico, etc., oportunidade para ouvirmos um dramaturgo falar sobre a sua própria arte. 
Interessou-me aqui incluir as suas reflexões sobre a comédia e a tragédia no decurso do pós-Segunda Grande Guerra.

«[...] Na tragédia antiga e no teatro shakespeareano, o herói pertence a mais alta classe da sociedade, isto é, à nobreza. [...] Entretanto, quando Lessing e Schiller introduzem a tragédia burguesa, o público passa a ver a si mesmo na pele dos heróis que sofrem no palco. E foi-se ainda mais adiante. A personagem de Woyzeck, de Georg Büchner, é um proletário primitivo que, do ponto de vista social, representa menos que o frequentador mediano de teatro. Com isso, justamente nesta forma extrema de existência, nesta forma derradeira e misérrima, o público passa a ver o ser humano, isto é, a si mesmo.
Neste ponto, deve-se mencionar, finalmente, Luigi Pirandello, o primeiro dramaturgo a apresentar o herói no palco, tanto quanto eu saiba, de maneira desmaterializada, transparente, analogamente ao que Thornton Wilder fez com o espaço dramático, de forma que o público, sentado diante de tal esquema, assiste à sua própria fragmentação, à análise psicanalítica de si mesmo e, desse modo, o palco se torna um espaço ou um mundo interior.
Ora, mesmo antigamente, o teatro não colocava em cena apenas reis e proprietários de terra. Desde sempre, a comédia reconheceu o mendigo, o agricultor e o cidadão comum como heróis, mas apenas a comédia. Nas peças de Shakespeare, jamais entra em cena um rei engraçado; a sua época permitia mostrar um senhor talvez como um monstro sanguinário, mas nunca como um tolo. Em suas peças, cômicos são sempre os palacianos, os artesãos, os trabalhadores.
Assim, pode-se observar, no desenvolvimento do herói trágico, uma guinada na direção da comédia. O mesmo se dá com o tolo, que cada vez mais se transforma numa figura trágica. Este estado de coisas, porém, não é destituído de significado. O herói de uma peça de teatro não apenas impulsiona a ação, ou é vítima de um determinado destino, mas também representa um mundo. Por isso, devemo-  -nos perguntar acerca do modo como o nosso mundo, pleno de dúvidas, deve ser representado no palco, com que heróis; devemo-nos perguntar acerca do modo como os espelhos captam esse mundo e como eles devem ser polidos. [...]
O mundo de hoje pode ser mais bem representado por um pequeno traficante, por um escriturário ou por um policial, do que por um Conselho Federal ou um chanceler. A arte ainda tem penetração nas vítimas, tem penetração nas pessoas em geral, mas os poderosos não são mais por ela alcançados. [...]
Porém, a tarefa da arte, se é que ela pode ter uma, e, por conseguinte, a tarefa do teatro hodierno, é a de criar forma ou algo concreto. E isto é conseguido, sobretudo, pela comédia. A tragédia, por ser o gênero artístico mais rígido, pressupõe um mundo enformado. A comédia, se não for comédia social, nos moldes de Molière, pressupõe um mundo desenformado, em mudança, em revolução, um mundo em arrumação, como o nosso. A tragédia vence a distância. Ela faz os mitos dos tempos remotos trazerem os atenienses ao presente. A comédia cria distância [...]. Seus temas [de Aristófanes] não se circunscrevem a mitos, mas a ações inventadas, que não transcorrem no passado, mas no presente. Elas são lançadas ao mundo feito projéteis que, ao se transformarem em megafone, transformam o presente em algo cômico e, dessa forma, também visível. Agora isto não quer dizer que um drama, hoje, possa ser apenas cômico. [...] 
A tragédia pressupõe culpa, necessidade, moderação, controle, responsabilidade. Na confusão reinante em nosso século, nesta desordem da raça branca, não existem mais culpados e também não existem mais responsáveis, [...] Tornamo-nos coletivamente culpados, coletivamente encarcerados nos pecados de nossos pais e de nossos antepassados. [...] A nós convém apenas a comédia. Nosso mundo caminhou simultaneamente para o grotesco e para a bomba atômica, do mesmo modo que os quadros apocalípticos de Jerônimo Bosch também são grotescos. [...]
Porém, o trágico ainda continua sendo possível, embora não mais a tragédia pura. Podemos obter, gerar, o trágico a partir da comédia, como um momento assustador, ou como um abismo que se abre. É assim que muitas tragédias de Shakespeare são comédias, das quais o trágico emerge. 
Quase se poderia concluir que a comédia é a expressão do desespero, mas tal conclusão não é definitiva. [...]
A liberdade do homem manifesta-se no riso, enquanto no choro se manifesta a sua necessidade. Hoje é necessário demonstrar a liberdade. Os tiranos deste planeta não se comovem diante das produções dos poetas, bocejam diante de seus poemas queixosos, consideram seus cantos heróicos contos de fada tolos e adormecem diante de poemas religiosos. Apenas uma coisa os assusta: o escárnio. [...]
O cômico é considerado coisa menor, dúbia, indecente, e só é validado no momento em que, com ele, alguém se sente tão canibalisticamente bem quanto uma vara de porcos. Mas, a partir do momento em que o cômico passa a ser reconhecido como perigoso, revelador, desafiador, moralizador, ele é deixado de lado, como se fosse um ferro em brasa, visto que a arte pode ser tudo o que quiser, desde que permaneça agradável. [...]»


Fonte: Dürrenmatt, Friedrich. (2007) O sósia/Problemas do teatro. São Paulo: EDUSP.

Steiner, A psicanálise de Freud

"Nostalgia do absoluto", livro composto por várias conferências proferidas por George Steiner, aborda a substituição dos sistemas religiosos por outros que ambicionam constituir uma explicação abrangente, que preencha o vazio deixado pela nostalgia do absoluto, na sociedade ocidental. Steiner debruça-se sobre o marxismo, a psicanálise e a antropologia de Lévi-Strauss.
Aqui deixo um excerto que reporta à Psicanálise, numa aproximação à descrença do filósofo inglês Karl Popper na cientificidade da teoria freudiana, que afinal recorre ao mito e à literatura para 'provar' as suas teses.


«[...] Desejo sugerir, com hesitação, mas, espero, alguma seriedade, que a famosa divisão da consciência psicológica humana - id, ego, superego - deve muito à divisão em cave, quartos e sótão da casa da classe média vienense na viragem do século XIX para o XX. As teorias de Freud não são científicas no sentido de serem universais, independentes do seu meio social e étnico, como o são as teorias da física ou da biologia molecular. São inspiradas leituras e projecções das condições económicas, familiares e sexuais da existência burguesa na Europa Central e Ocidental entre, digamos, os anos 80 do século XIX e os anos 20 do século XX. [...]

Com isto não procuro diminuir o poder seminal das observações de Freud. É perfeitamente consensual que essas observações tiveram repercussões formidáveis na cultura do Ocidente. [... Mas] Quando seria de esperar um conjunto de provas de natureza clínica e estatística, a enumeração de um grande número de casos, Freud dá-nos uma "prova" - ponho a palavra entre aspas - que vai buscar ao mito e a literatura. [...] Aquilo que, para Freud, demonstrava a realidade da universalidade das suas metáforas terapêuticas, como o complexo de Édipo, era igualmente um conjunto de elaborações metafóricas e dramas arquetípicos, corporizados e transmitidos sob a forma de mitos. [...]

Na psicanálise, tal como no marxismo, existe o mistério do pecado original. Mas, ao contrário do relato de Marx, o de Freud é específico. Conta-nos do parricídio cometido na horda primitiva, da castração e/ou assassínio da figura paterna pelos seus filhos. A humanidade, diz-nos Freud, está marcada por este crime primitivo. Daí descende a longa história do ajustamento entre pulsão instintiva e repressão social, sexualidade indiscriminada e ordem familiar, ajustamento esse que está bem longe de ser perfeito. [...] Ao reflectir sobre a infelicidade, aparentemente inerente, da espécie humana, enredada numa dialéctica de impulsos e constrangimentos de natureza biológica e social, Freud embrenha-se cada vez mais no mitológico. [...]
Segundo Freud, duas divindades, dois deuses, dois poderes irresistíveis governam e dividem o nosso ser. O amor e a morte, Eros e Tanatos. O seu conflito determina os ritmos da existência, da procriação, da evolução somática e psíquica. Mas no fim - contrariamente a todas as previsões intuitivas e instintivas, a todas as nossas esperanças - não é Eros, o amor, mas sim Tanatos quem prevalece, quem se mostra mais próximo das raízes do humano. O que a nossa espécie procura, em última instância, não é a sua sobrevivência e perpetuação, mas sim o repouso, a perfeita inércia. No programa visionário de Freud, a explosão da vida orgânica, que conduziu à evolução humana, foi uma espécie de anomalia trágica, quase uma exuberância fatal. Acarretou sofrimentos incalculáveis e catástrofes ecológicas. Mas este desvio de vida e consciência acabará mais cedo ou mais tarde. Um processo de entropia interna está em movimento. Uma grande quietude voltará à criação à medida que a vida regresse à condição natural do inorgânico. A consumação da libido encontra-se na morte.
 
[...] A psicanálise freudiana estava determinada a retirar da psique humana as ilusões infantis - é esse o termo usado por Freud - da religião. Freud queria libertar o homem da infantilidade das crenças metafísicas. Evidentemente, a psicologia de Jung não só recorre à experiência religiosa para muitas das suas categorias principais, como vê na religião uma componente necessária e evolutiva da história e saúde da alma humana. Consequentemente, a disputa freudiana com o modelo junguiano é em parte, creio, uma disputa entre o agnosticismo e a crença no transcendente e, a um nível muito mais profundo, um duelo entre uma nova mitologia, uma crença substituta, e um sistema que quer trazer de volta os seus antigos rivais, os deuses. [...] Freud procurava banir as sombras arcaicas do irracionalismo, da fé no sobrenatural. A sua promessa, como a de Marx, era uma promessa de luz. Não se cumpriu. Antes pelo contrário.»


Fonte: Steiner, George. (2003) Nostalgia do absoluto. Lisboa: Relógio d'Água Editores.

Sarrazac, O futuro do drama

Jean-Pierre Sarrazac é um dos nomes incontornáveis para pensar o Teatro hoje. O seu livro "O futuro do drama", com origem na sua tese de doutoramento de finais dos anos 70 e reeditado 20 anos depois, continua a constituir uma ferramenta importante na reflexão sobre o teatro contemporâneo: a postura face aos géneros literários, as relações entre a fábula e a montagem, a personagem inacabada, etc., procurando dotar o criador/espectador de elementos que lhe permitam melhor compreender as profundas transformações que a arte dramática conheceu na 2ª metade do século XX. A designação de teatro rapsódico não propõe a ausência de forma, mas a forma mais livre que o teatro conheceu, dando conta da existência humana na sua complexidade e fugacidade. 


«[...] princípios característicos da rapsodização do teatro: recusa do "belo animal" aristotélico e escolha da irregularidade, caleidoscópio dos modos dramático, épico e lírico, reviravolta constante do alto e do baixo, do trágico e do cómico; junção de formas teatrais e extrateatrais, formando o mosaico de uma escrita resultante de uma montagem dinâmica; passagem de uma voz narradora e interrogante, que não poderíamos reduzir ao "sujeito épico" szondiano, desdobramento (nomeadamente em Strindberg) de uma subjectividade alternadamente dramática e épica (ou visionária)... Limitar-me-ei, portanto, a um problema que se situa no centro da evolução da escrita dramática no século XX: a liquidação do último constrangimento "aristotélico": a "unidade de acção", tão incómoda e obsoleta no nosso tempo, como incómodas e obsoletas podem ter parecido, no século das Luzes, as unidades de tempo e de lugar. [...]

O modelo dramático, fundado sobre um conflito interpessoal mais ou menos unificado, deixou de dar globalmente conta da existência moderna. E isso, desde os finais do século XIX e cada vez mais claramente com o passar das décadas. [...] O devir rapsódico do teatro aparece, assim, como a resposta acertada a esta explosão do próprio mundo. A montagem das formas, dos tons, todo este trabalho fragmentário de desconstrução/reconstrução (descoser/recoser) em torno das formas teatrais, parateatrais (nomeadamente, o diálogo filosófico) e extrateatrais (romance, novela, ensaio, escrita epistolar, diário, relato de experiências de vida...) praticado por escritores tão diferentes quanto Brecht, Müller, Duras, Pasolini, Koltès, apresenta características de uma intensa rapsodização das escritas teatrais. [...]

Inclino-me a apresentar esta presença vocal e gestual do rapsodo como um traço de rejeição, contra um certo neo-aristotelismo que actualmente domina e se empenha em restaurar as regras e outras unidades. Proclamando, se necessário for, como nos velhos tempos de D'Aubignac, que o autor dramático deve permanecer ausente da sua obra. Porém, eu faço o mesmo apelo para distinguir a obra verdadeiramente rapsódica do simples zapping pós-moderno das formas: montagem - ou colagem - indiferente (ou seja, nenhuma voz emerge face ao público) de formas que se tornaram kitch e atemporais. O que falta, tanto no pós-moderno como no neoclássico, é esta voz de escuta e de inquietação que é a do sujeito rapsódico, é a pulsão - a "pulsação" - rapsódica. [...]»


Fonte: Sarrazac, Jean-Pierre. (2002) O futuro do drama. Porto: Campo das Letras.

Barthes, Em que consiste o Ditirambo?

Vem em todos os manuais sobre o Teatro Grego. A Tragédia nasceu em finais do século VI a.C. de um canto lírico-coral chamado Ditirambo (manifestação em honra do deus Dioniso), quando Téspis se destaca do coro dando lugar a uma forma dramática. Interessa pois perceber em que consiste o Ditirambo. 


«[...] Na época clássica, o espectáculo grego compreende quatro géneros principais: o ditirambo, o drama satírico, a tragédia, a comédia. Podemos acrescentar-lhe: o cortejo que antecedia a festa,o comos, provável sobrevivente das procissões (ou mais exactamente dos monómios dionisíacos); e embora se trate mais de concertos do que de representações, as audições timélicas, espécie de oratórios cujos executantes tomavam lugar na orquestra, à volta da tímele [altar sagrado], ou lugar consagrado a Dioniso.
O ditirambo é proveniente de certos episódios do culto de Dioniso, no século VII a.C., provavelmente perto de Coríntia, cidade comercial e cosmopolita. Rapidamente adquiriu duas formas: uma forma literária, e uma forma popular na qual o texto era (largamente) improvisado. Levado para Atenas por Téspis, o ditirambo normalizou-se. O desenvolvimento do género dramático (tragédia e comédia) não lhe fez nenhuma concorrência: as representações ditirâmbicas ocupavam os dois primeiros dias das Grandes Dionísias, antes dos dias consagrados aos concursos de tragédia e de comédia. Era uma espécie de drama lírico, cujos temas, mitológicos ou por vezes históricos, faziam lembrar muito os da tragédia. A diferença (capital) era que o ditirambo se representava sem actores (mesmo se havia solos) e sobretudo sem máscaras e sem trajos. O coro era numeroso: cinquenta executantes, crianças (de menos de dezoito anos) ou homens. Era um coro cíclico, quer dizer que as danças do coro se faziam na orquestra à volta da tímele, e não de frente, perante o público, como na tragédia. A música utilizava sobretudo modos orientais, era de significação tumultuosa (por oposição ao peã  [hino sacro] apolíneo); esta música tornou-se cada vez mais importante do que o texto, o que aproxima também o ditirambo da nossa ópera. Não nos resta nenhum destes ditirambos, salvo alguns fragmentos mutilados de Píndaro. [...]»



Fonte: Barthes, Roland. (2009) O óbvio e o obtuso. Lisboa: Edições 70.